Ícone do cinema nacional apontado como “maldito”, o mineiro Neville D’Almeida fez história no país com longas tórridos e populares como A Dama do Lotação (1978), Os 7 Gatinhos (1980) e Rio Babilônia (1982). Porém, antes do sucesso, ele foi interditado pela ditadura militar, autodeclarando-se “o diretor mais censurado do Brasil”. Neste ano, ganhou o documentário Neville D’Almeida – Cronista da Beleza e do Caos, de Mário Abbade, que retrata sua trajetória.
Aos 78 anos, o diretor também prepara uma sequência do rodrigueano A Dama da Lotação, intitulada A Dama da Internet, e a série Ciúme e Relação Abusiva: a Destruição do Amor. Além disso, tem apresentado filmes que, proibidos no lançamento, seguem desconhecidos do público.
Um desses momentos ocorreu neste mês de novembro em Porto Alegre, quando, homenageado na mostra Cinema de Invenção, na Cinemateca Capitólio, apresentou Mangue-Bangue (1971), raro projeto que até então havia tido apenas duas sessões públicas. GaúchaZH aproveitou para conversar com o cineasta sobre sua carreira e a censura no país.
Por que você decidiu fazer cinema?
A primeira vez em que entrei em uma sala de cinema eu tinha seis anos. Naquele dia, disse: quando crescer, vou fazer isso. E nunca fiz outra coisa. Escolhi o cinema. Entrei para o Cineclube de Belo Horizonte quando tinha entre 17 e 18 anos. Estudei teatro e fiz curso de ator. Fui estudar cinema nos EUA, mas não valeu nada, uma porcaria. Morei lá durante cinco anos. Trabalhei, juntei dinheiro e produzi eu mesmo o meu primeiro filme.
Houve algum diretor ou filme que te levou para esse caminho?
A minha inspiração era o cinema de vanguarda e também o europeu, francês e italiano clássico. No cineclube, estudei todas as cinematografias do mundo: sueca, espanhola, mexicana, brasileira, americana. Fiz uma viagem ao redor do mundo com os filmes. Eu queria estudar cinema nos EUA, mas tive uma grande decepção lá, pois há uma ignorância enorme com relação à produção dos outros países. É um país analfabeto em matéria de cinema realizado ao redor do mundo. Só conhecem a produção americana.
Não deu para tirar nenhum proveito da estadia nos Estados Unidos?
O cinema americano é totalmente convencional, com raras exceções. Não é dedicado à linguagem, mas ao comércio. É um cinema pelo qual não tenho muito interesse. Entendi que tinha aprendido tudo sobre cinema no Brasil e podia dar aula para os americanos.
O que achou do documentário biográfico Neville D’Almeida – Cronista da Beleza e do Caos, de Mário Abbade?
Ficou ótimo! Abbade fez uma retrospectiva histórica desde o meu primeiro filme até os dias de hoje. O resultado foi muito bom porque faz justiça a um cinema que foi muito combativo. Eu sou o cineasta mais proibido da história da América Latina e um dos mais proibidos do mundo! Tive cinco filmes cortados e jamais exibidos. Comecei a filmar com o início da ditadura militar, em 1967. Os 20 anos de ditadura foram o período em que mais filmei. Não aceitei a ditadura, não aceitei a censura. Nessa época, todo mundo foi para cima do muro. Além de ser proibido pela ditadura, também fui proibido pela crítica brasileira e pela própria classe cinematográfica. Não teve ninguém que defendesse meus filmes na época.
Existe só um tipo de cinema, que é aquele que consegue passar pela censura institucionalizada que atua em todos os setores da produção. É por isso que é preciso refazer a história do cinema brasileiro: teve gente que conseguiu furar esses bloqueios fazendo filmes, mas e os que não conseguiram? E os que estão começando? E os que começaram há 50 anos e estão morrendo de fome? O público tem direito a ver tudo. E muita coisa lhe foi escondida.
Os artistas colocaram uma mordaça?
Sim. E se sentiram confortáveis com ela. Tanto a classe cinematográfica quanto os críticos. Isso foi fundamental para me levar a fazer um cinema extremamente independente. Acho que a ferramenta mais importante para um artista é a liberdade. O que parecia uma tragédia, para mim, virou uma bênção. Acabei ocupando um espaço que ninguém ocupou. Eu acho, inclusive, que a história do cinema brasileiro precisa ser refeita. A história que conhecemos é falsa! Conhecemos o ponto de vista dos vencedores, ignorando quem ficou à margem. Isso é um erro, um problema grave.
Qual seria a verdadeira história do cinema brasileiro?
O que é certo é que não é a história oficial que está aí, que apaga os filmes experimentais. Acham erroneamente que fazer sucesso é produzir algo bem comercial. Há dois caminhos para o sucesso: um é copiar o que obteve êxito antes, os filmes de cabresto. O outro – que sempre foi o meu – é mostrar o que nunca foi mostrado a partir de um estilo próprio. Isso acaba sendo excludente. Quem não fica registrado no catálogo da turminha que está em voga no momento acaba ficando de fora dos livros e da história oficial.
Quem seria a turminha?
Ah... Essa turminha tinha muito valor. Houve três revoluções no cinema que nos tocam particularmente: o Neorrealismo italiano, a Nouvelle Vague na França e o Cinema Novo do Brasil. Esta última foi a que trouxe mais novidade. Apresentou um cinema emergente, muito jovem e vibrante, além de uma figura muito marcante como a do Glauber Rocha. Aprendi muito com os filmes do Cinema Novo. Mas sempre tive uma certeza: não era o meu cinema. O fato de eu gostar de você não quer dizer que eu vá fazer a mesma coisa que você faz. Sempre vi essas revoluções como importantes, mas para mim era necessário fazer outra coisa que elas não faziam: libertar o cinema do moralismo, do cabresto ideológico. Foi isso o que fiz e que me diferenciou e me colocou à parte.
Mas, mesmo “à parte”, você experimentou um grande sucesso comercial, por exemplo, com A Dama do Lotação.
Tive muitos filmes experimentais incompreendidos e proibidos antes desse grande sucesso comercial. O importante foi que continuei trabalhando com liberdade, o que acaba trazendo problemas. O mercado cinematográfico é muito convencional. É pequeno burguês. A distribuição de cinema é um dumping (prática comercial agressiva de ocupação de mercado). Hoje está passando aí um filme que considero uma porcaria, Coringa, que tira espaço de muitos outros. Tem de haver uma reformulação da redistribuição, com espaço para todos os filmes. Não pode uma única produção ocupar tanto espaço e, assim, tirar de circulação 40 ou 50 outras produções. Essa é a perversão do cinema, uma perversão do mercado.
Os filmes de super-heróis têm ocupado um grande espaço nos cinemas. Martin Scorsese chegou a dizer que não os considera “cinema” porque os atores não conseguem passar uma experiência emocional e psicológica para os espectadores. Você concorda?
Homem-Aranha, Batman, Super-Homem, Mulher Maravilha, Hulk: são histórias das décadas de 1940 e 50. O cinema hoje está regredindo. O que evoluiu foi a extrema violência, usada de maneira injustificável, ou melhor justificável dentro dos padrões norte-americanos, para quem é comum sair pelo mundo matando pessoas, provocando guerras, invadindo, fazendo intervenções. Os heróis americanos estão sempre matando latinos, índios e negros, ou seja, nós. Estamos vivendo um momento de glorificação da violência. O cinema de sucesso hoje é isso: glorificação da violência. O que acaba justificando as intervenções do país na Síria e no Iraque, por exemplo. Há um casamento do cinema com a violência pautado por interesses políticos internacionais. Há uma ascensão da violência total para justificar os crimes que são feitos contra a humanidade todos os dias. E o mundo está tomado de refugiados. Quanto mais eles são, mais violência é preciso produzir.
Na sua opinião, o que justifica o sucesso dos filmes de super-heróis?
O público é induzido pelo mercado. Quando você gasta US$ 100 milhões para promover um produto, vai fazer algo tão profundo que terá uma forte influência sobre as pessoas. A propaganda não é só a alma do negócio, ela molda não só o produto, mas também o consumidor. Aí lemos e vimos o tempo inteiro que tal personagem é isso ou aquilo. Vivemos um momento de robotização das mídias sociais, com máquinas espalhando mentiras que, repetidas mil vezes, como dizia Goebbels, tornam-se verdades. O cinema também vive a sua robotização. Há uma indução das massas a partir da repetição de mentiras que, por exemplo, transformam um super-herói em um grande personagem. No fundo, quem tem mais dinheiro para propaganda consegue os melhores resultados.
Homem-Aranha, Batman, Super-Homem: são histórias das décadas de 1940 e 50. O cinema está regredindo. O que evoluiu foi a extrema violência, usada de maneira injustificável, ou melhor, justificável dentro dos padrões norte-americanos, para quem é comum sair pelo mundo matando pessoas, provocando guerras, fazendo intervenções.
Como você reage hoje ao rótulo de ser um “cineasta maldito”?
As pessoas acham que é bonito ser maldito. Os bobos acham. Esse rótulo só serve para os seus adversários desvalorizarem você. “O rei dos malditos”, “o mais maldito de todos”, parece uma coisa romântica, mas é outra perversão. É uma justificativa para destruir o que você fez e quem você é. “Ah, já que é maldito não precisa de produtor”. “Já que é maldito não precisa de distribuição”. É como amarrar a corda no pescoço e se jogar do abismo. Jamais aceitei isso. Pelo contrário, faço cinema de criação, de poesia, experimentação, arte. É outra coisa. Ser maldito é totalmente depreciativo.
Quais foram seus mais emblemáticos episódios com a censura?
Meu primeiro filme, Jardim de Guerra (1967), foi proibido, interditado e jamais exibido. O segundo, Piranhas do Asfalto (1970), idem. Isso foi a ditatura militar. Não podia falar mal do governo, não podia aparecer foto do Che Guevara, não podia corpos nus, não podia nada. Era um negócio brutal. Um episódio emblemático atrás do outro. A censura era a própria perversão social: impedia as pessoas de terem acesso a um universo de liberdade de criação e informação. Mas eu resisti, graças a Deus.
Você enxerga censura atualmente?
Antigamente, o censor observava coisas como “falou que a Rússia não sei o quê” ou “a China de Mao Tsé-Tung”. Hoje é diferente. E mais forte ainda. Porque não há mais um corte específico de um trecho da criação. Começa antes, com a seleção da distribuição de recursos estatais, a seleção dos festival de cinema. Os festivais se guiam pela ditadura do gosto, baseada no que os curadores apreciam ou não. E também há a censura do patrocinador. Dos distribuidores. Dos investidores. No fim, existe só um tipo de cinema, que é aquele que consegue passar pela censura institucionalizada que atua em todos os setores da produção. É por isso que é preciso refazer a história do cinema brasileiro: teve gente que conseguiu furar esses bloqueios todos fazendo filmes, mas e os que não conseguiram? E os que estão começando? E os que começaram há 50 anos e estão morrendo de fome? O público brasileiro tem direito a ver tudo. E muita coisa lhe foi escondida.
Você considera haver cerceamento na abordagem de determinados temas hoje em dia?
Há uma censura institucional em que o governo coloca um filtro na produção cinematográfica, escolhendo o que seria bom. É isso: uma ditadura do gosto. Ditadura institucional, em que nomeiam pessoas para proibirem o que não gostam. O que ocorre atualmente, além disso, é que a democracia e o Estado laico dão sinais de que estão desaparecendo. A proibição se amplia para determinados temas e determinados usos da linguagem, não só afetando a liberdade de criação, mas cerceando a tal ponto que só o que interessa a quem está no poder pode ser efetivamente realizado. E a religião passa a ser uma desculpa. Isso é uma vergonha. É um absurdo o que está acontecendo. Pregar a violência contra índios, incentivar a destruição da natureza, manifestar-se de maneira discriminatória e usar a religião como escudo... É um momento obscuro, de trevas. Mas o cinema e as demais artes vão sobreviver. Como sempre sobreviveram.
Como anda a produção de A Dama da Internet?
É um projeto que estou querendo fazer há algum tempo, mas encontro uma resistência muito grande a ele, desse sistema todo de que falei antes. É o mesmo problema com relação à minissérie original sobre ciúme e relacionamento abusivo, com episódios de 30 minutos, que quero produzir. Ninguém teve a coragem, ainda, de investir nessa série.
De que maneira A Dama da Internet dialogaria com A Dama da Lotação?
A Dama da Lotação foi um filme dos anos 1970, quando a liberdade sexual feminina se desenvolvia. Tinha o seguinte conceito: ela se entrega a todos para continuar amando seu marido. Tinha essa ideia de libertação através da sexualidade. Uma ideia que, neste século 21, está ultrapassada. Hoje são as mulheres que fazem com os homens o que eles fizeram com elas nos últimos 2 mil anos: opressão, tortura, ofensas, humilhações. A Dama da Internet é sobre a plenitude da mulher, espezinhando os homens do passado. É uma nova proposição. Agora o sexo não é mais importante. Você jamais terá libertação por meio do sexo. O mais importante é uma atitude de libertação existencial. Só após isso você poderá buscar a libertação sexual. Não adianta as pessoas quererem a sexualidade enquanto são exploradas, mal pagas, ofendidas e injustiçadas. Ao chegarem em casa, o sexo será uma porcaria, pois você está sofrendo. Vai ser mais uma frustração. Essa é A Dama da Internet.
Ao 78 anos e com essas dificuldades de produzir, o que te motiva a seguir em atividade?
Faço filmes para quem está em uma condição desprivilegiada: mulheres, negros e defensores do meio ambiente. Esse é meu cinema. Estou aqui para servir a quem é oprimido. Graças a Deus resolvi fazer um cinema de liberdade. É uma escolha. Não fujo dela. E, no fim, os sentimentos de fracasso e sucesso são muito parecidos. Dar certo ou não é a mesma coisa.
Como assim?
O fracasso te traz libertação. E o sucesso, às vezes, te proporciona um falso sentimento de poder. Quando fiz sucesso, pensei: não vou ficar nesse lugar, vou voltar para o submundo. Ambas as situações têm os dois lados, o bom e o ruim.