Muito antes de Michel Houellebecq se tornar o maior escritor francês vivo, o adjetivo "houellebecquiano" já havia ingressado no linguajar cotidiano pelos portões do jornalismo e da crítica. Definir o termo pode ser difícil mesmo se você estiver acostumado a lê-lo na forma expressiva que parece ter escolhido de modo definitivo, o romance. E particularmente difícil se você vive num universo povoado por repartições públicas, Fnacs, telejornais repletos de manifestações e atentados – em resumo, um universo houellebecquiano.
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Melhor recorrer ao próprio Michel Houellebecq, como se chama o narrador de Extensão do domínio da luta(1994): "Não gosto deste mundo. Decididamente, eu não gosto dele. A sociedade na qual vivo me desgosta; a publicidade me enoja; a informática me faz vomitar. Todo o meu trabalho de profissional de informática consiste em multiplicar as referências, as verificações, os critérios de decisão racional. Isso não faz nenhum sentido. Para falar francamente, é mesmo totalmente negativo; um acobertamento inútil para os neurônios. Este mundo tem necessidade de tudo, menos de informações suplementares". Ou a outro Houellebecq, o escritor célebre que alcança ao protagonista de O mapa e o território (2010), também artista, uma coletânea de conferências na qual se lê: "Eis em síntese nossa posição de artistas: nós somos os últimos representantes do artesanato no qual a produção mercantil desferiu um golpe fatal". Ou ainda a Bruno, de Partículas elementares(1998): "Muitos anos depois, Bruno seguia na dúvida. Aquelas coisas tinham passado; tinham relação direta com um menino tímido e obeso, cujas fotos guardava. Esse menino estava relacionado com o adulto devorado pelo desejo em que havia se convertido. Tinha tido uma infância penosa, uma adolescência atroz; aos quarenta e dois anos ainda estava, objetivamente, longe da morte. Que lhe restava viver? Talvez alguns boquetes pelos quais, bem sabia, pagaria cada vez com mais facilidade. Uma vida voltada para uma meta deixa pouco espaço para a lembrança".
A ficção de Houellebecq foi um sopro de ar numa década em que os franceses tinham se tornado presa fácil para Brida, de Paulo Coelho. Mas não o ar límpido da literatura que ousa dizer seu preço, e sim uma lufada fétida como o cheiro de carne putrefata que se sente a certa altura no interior do escritório de Extensão do domínio da luta. Ao esfregar o nariz do leitor na repulsiva intimidade de seus personagens anódinos, Houellebecq cria um universo desesperador. Comunicação, para suas criaturas, nada mais são do que alçapões para círculos mais profundos da danação. O inferno, nessa cosmologia, não são apenas os outros, mas tudo aquilo que poderia ser associado à ideia de remissão: amor, sexo, compaixão. O único ativismo possível é o da morte, mas seus heróis parecem condenados a contemplar esse prêmio sem jamais merecê-lo. É irônico que um escritor assim tenha sido chamado de "pornográfico".
Uma coincidência infeliz, mas perfeitamente houellebecquiana, fez com que seu mais recente romance, Submissão(2015), fosse associado ao infame atentado contra a redação da revista Charlie Hebdo, no início do ano passado. Naquele dia 7 de janeiro, chegava às bancas uma edição do jornal humorístico com uma capa dedicada ao escritor – mais precisamente, ao livro, então prestes a ser lançado.
Drama político do mais alto quilate, Submissão passa-se na França de 2022, na qual o fictício partido Irmandade Muçulmana acaba de eleger o primeiro presidente muçulmano da República, Mohammed ben Abbes. O homem, também nesse caso, tem uma circunstância: a eleição de Ben Abbes só foi possível porque o Partido Socialista, do presidente François Hollande, cumpriu dois mandatos catastróficos e não teve alternativa a não ser se aliar aos islamistas a fim de deter o caminho da direitista Frente Nacional em direção ao poder. O governo eleito é majoritariamente socialista, cabendo à Irmandade Muçulmana o cargo de presidente e o Ministério da Educação Nacional. O protagonista, François, docente que pesa vantagens funcionais de aderir ao novo establishment, é o retrato de um país à deriva.
Antes mesmo do atentado, Submissão foi tratado por alguns como islamofóbico. O ataque – que, obviamente, não tinha nenhuma relação direta com o livro – pareceu confirmar esse diagnóstico. A foto do Boulevard Voltaire (com Hollande, Angela Merkel, David Cameron, Serguei Lavrov, Binyamin Netanyahu, Mahmoud Abbas e outros embalados pelo lema "Je suis Charlie", também onipresente nas redes sociais), que nada fica a dever à distopia do romance, de pouco valeu para chamar esses críticos à razão. É discutível se a arte do destino contribuiu, nesse caso, para a leitura do livro.
Quanto a Houellebecq, por certo o episódio não modificou seu imensurável desprezo pelo Islã. Ao que se saiba, ele tampouco considerou necessário formular juízo sobre os muçulmanos de carne e osso além do que está em seus livros. Não há o que estranhar nessa atitude. Aquilo que os atiradores de Paris entendem por Islã tem pouco a oferecer a alguém como Houellebecq, para quem a possibilidade de transcendência parece ser a única questão filosófica e artística digna de atenção. Para o escritor, porém, a ideia de paraíso é ridícula, e a de inferno, banal. Se há algo que mereça ser levado a sério, é a tentativa da arte. Num ensaio de 1999, sobre o escritor americano H. P. Lovecraft (1890-1937), ele escreveu: "Este homem que falhou na vida, teve sucesso, finalmente, ao escrever". E, depois de listar as realizações do autor de Nas montanhas da loucura, afirmou: "Tudo isso não teria sido talvez suficiente se não sentisse, no centro de tudo, a pressão de uma devoradora força interior".
Talvez com Houellebecq não seja muito diferente.
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FRONTEIRAS DO PENSAMENTO
Michel Houellebecq estará em Porto Alegre na segunda-feira, 7 de novembro. O encontro será às 19h45min no Salão de Atos da UFRGS (Paulo Gama, 110). Os ingressos estão esgotados. A última palestra do ciclo será de Jan Gehl (21 de novembro).
O Fronteiras do Pensamento Porto Alegre é apresentado por Braskem, com patrocínio Unimed Porto Alegre e parceria cultural PUCRS. Empresas parceiras: Liberty Seguros, CMPC Celulose Riograndense, Souto Correa, Sulgás e Stihl. Parceria institucional Hospital Mãe de Deus, Fecomércio e Unicred e apoio institucional UFCSPA, Embaixada da França e prefeitura de Porto Alegre. Universidade parceira: UFRGS. Promoção: Grupo RBS.