Guilherme Fontes passou boa parte dos últimos 20 anos explicando sua ambição de estrear como diretor de cinema à frente de uma superprodução de época - e também justificando as razões para Chatô, o Rei do Brasil ter demorado tanto a chegar aos cinemas. O ator e diretor de 48 anos garante que os problemas decorrentes da acusação de mau uso de verbas públicas foram uma combinação de inexperiência sua e perseguição do governo. Prefere agora, com o filme finalmente em cartaz, pouco falar do imbróglio, que, pare ele, está superado. Em entrevista a ZH, Fontes fala sobre a boa recepção da crítica à sua alegórica e anárquica cinebiografia do paraibano Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Mello (1892-1968), magnata das comunicações que teve grande influência econômica e política no Brasil do século 20. E avisa: o projeto Chatô ainda não acabou.
Chatô recebeu boa avaliação da crítica e de cineastas como Cacá Diegues, que dirigiu você em Um Trem para as Estrelas (1987). Esperava essa recepção em meio à expectativa e à desconfiança que cercaram o filme?
Estou achando bom não só para mim, mas para meus técnicos, atores e todo o cinema brasileiro, já que Chatô era tão aguardado, tão comentado, tão polemizado. Fico feliz de estar devolvendo um produto de alta qualidade em todos os aspectos. O filme tem uma série de homenagens, várias coisas que absorvi quando tinha meus 30 anos. E tive de ficar quase outros 20 anos fingindo que não tinha absorvido nada. Chatô causou nessas pessoas o mesmo que tem causado no público: satisfação e um certo espanto.
Você adquiriu os direitos do livro do Fernando Morais em 1995 e lançou Chatô em 2015. Nesses 20 anos, que períodos foram efetivamente dedicados às filmagens?
Chatô foi programado para ter 21 semanas de filmagens. Acabei fazendo em 19, 20 semanas e com menos recursos do que planejei. Filmei mais ou menos 15 semanas em 1999, sendo que 13 delas no primeiro semestre. Aí, veio o ataque (do governo, acusando o ator de irregularidades nas prestações de contas). Peguei todas as minhas economias para conseguir fazer mais duas semanas. Quebrei e só consegui voltar ao filme depois que provei que estava tudo em ordem com meus documentos. Em 2002, fiz as externas no Rio e, em 2004, em Santa Catarina e no Maranhão. Em 2015, completei com a computação gráfica, que era o que faltava.
Essa finalização foi a razão para o filme estrear só agora?
Resumindo, eu quebrei em 2000 e demorei 15 anos para conseguir os 20% que faltavam para completar o filme. Quando eu fui interrompido, bloqueado, cassado pelo governo, os canais que sustentavam a produção não tinham nenhum conhecimento dela, a não ser os formais. Desde os anos 2000, eu já estava com praticamente 80% de tudo feito. Deixei por último as externas e a computação. A verdade é uma só. Um filme acaba quando tem que acabar, porque ou o diretor concluiu seu trabalho ou o produtor se deu por satisfeito. Eu cumpro os dois papéis aqui. Como produtor, não poderia permitir que o filme saísse sem estar próximo do que foi planejado, e o diretor se deu bem com isso. Da pessoa do Guilherme Fontes, quem se f... foi o ator (risos).
Quanto custou Chatô?
Captei muito menos do que tinha autorização para captar, o que significa que fiz o filme com menos dinheiro que orcei. O projeto teve aprovação da Lei Rouanet, com R$ 12 milhões, e da Lei do Audiovisual, com R$ 3 milhões. Captei R$ 8,6 milhões. O resto eu banquei. Meu filme se tornou complicado por causa da relação com o governo, por eu ter iniciado ele sem ter todos os recursos e, depois, por eu ter sido uma presa fácil para um sistema prostituído. Dizer que um filme é caro ou barato é complicado, transcende qualquer conversa. Se for pensar no filme, tem de pensar no que é possível ser feito. Se vai custar 5, 10, 100 milhões, tem de ter os recursos na conta.
Em que pé estão os processos contra você por mau uso de recursos públicos?
Tive três processos no TCU (Tribunal de Contas da União), que é um órgão administrativo. Dois deles acabei ganhando. Resta um, que envolve a conclusão do filme. Acredito que, se o rito seguir o caminho dos outros dois, onde o direito ficou do meu lado, está evidente que esse vai ser arquivado.
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Um dos primeiros roteiros de Chatô teve a participação do cineasta gaúcho Carlos Gerbase. Nos créditos do roteiro, estão você, João Emanuel Carneiro e o americano Matthew Robbins. O texto teve muitas versões?
Esse roteiro que fiz com o Gerbase adaptava o livro ipsis litteris, com a história real e personagens reais. Eu poderia transformá-lo hoje em uma minissérie para a TV, um novo produto. Quando o João entrou no projeto, eu já tinha começado a pisar no acelerador da ficção. Decidi que não me interessava pelos personagens reais do livro e do primeiro roteiro. Apenas queria eles como fonte de inspiração para criar outros.
É o caso de Rosemberg, vivido por Gabriel Braga Nunes, amigo que se torna inimigo de Chatô e é uma combinação de Samuel Wainer e Carlos Lacerda?
Sim, e tem mais um entre esses dois que você citou.
Quem?
Ah, é no detalhe, tem de ver o filme de novo (risos). Eu não seria inconsequente em me aprofundar em personagens como Samuel Wainer e Carlos Lacerda em poucas cenas. Essa opção foi a coisa mais intuitiva que tive ao longo do processo. O que me interessava era o Assis Chateaubriand. Queria falar de seu envolvimento com as pessoas, a família, os amigos, os inimigos, suas aventuras, seus feitos, mostrá-lo como um herói completo e errático.
Chatô combina a grandiosidade de uma superprodução com a ousadia formal de um certo tipo de cinema de vanguarda e, no seu tom de comédia, com as ancestrais chanchadas nacionais. Não se parece com nada que o cinema brasileira tem apresentado em filmes de grande orçamento. Você concorda?
Com certeza. Obra de arte para mim é impacto. Você deve impactar e ser impactado. É não saber direito, de imediato, o que se viu. É poder até não gostar tanto, mas sair de alguma forma impactado do encontro. Isso é o que importa e é isso que tento fazer. Enfim, Chatô saiu quando tinha que sair e tomara que cumpra seu papel, que é mostrar ser possível sim fazer um filme em boas condições de produção e com qualidade.
Após encarar como primeiro filme um projeto ambicioso como Chatô, o que seria um desafio para um próximo longa?
Tenho vontade de filmar a Guerra do Paraguai pelo ponto de vista dos paraguaios (risos). Mas, por mais incrível que possa parecer, o projeto Chatô acabou de começar. Agora as pessoas vão ter conhecimento do enorme material que produzi. Tem esse roteiro pronto para uma minissérie para a TV aberta. Tem uma série de 25 documentários históricos para a TV fechada, com cinco prontos e 20 roteirizados. Todo o material que recolhi será disponibilizado numa plataforma digital com um rico conteúdo sobre a história do Brasil.
Tudo isso faz parte do mesmo projeto contemplado com os editais de financiamento?
Sim, é tudo do mesmo pacote, o que torna meu filme também o maior custo-benefício da história.
Por que lançar o filme por conta própria?
Adoraria ter recursos para fazer uma grande distribuição. Mas percebi que podia atingir meus objetivos mirando em menos gente, fazendo com que o filme fosse sendo aproveitado aos poucos. Sou um pouco centralizador. Quero ter acesso imediato ao resultado. Se eu coloco em 500 salas na estreia e na semana seguinte fico com 250, olha o prejuízo. Optei por fazer uma coisa do meu tamanho. Pedi na estreia 40 salas e me deram apenas 16. Hoje estamos com 50 salas e quero chegar a 150 até o final do ano. Estou descobrindo meu circuito. Quem percebe meu filme vai mantendo em cartaz. Se tiver o boca a boca que merece, Chatô vai longe.
Um dos destaques de Chatô é o desempenho de um elenco que apresenta, no início da carreira, nomes hoje conhecidos, como Marco Ricca no papel do protagonista. Como foi trocar a função de ator para dirigir colegas?
Nossa realidade é a da televisão, que é o vício da sobrevivência do ator brasileiro. Há uma dificuldade grande em representar para o cinema. O ator não consegue estabilizar em um caminho, está sempre tendo que pular conforme a oportunidade. Essa falta de prática acaba tornando mais raras as grandes interpretações no cinema. No caso do Marco, pedi para ele atuar de forma que mostrasse o lado gigante, primitivo, desagradável do Chatô. Eu me torno cúmplice do ator que dirijo. Sei exatamente o que quero e o que posso tirar dele.
E ter dado continuidade sua carreira de ator foi importante em que medida?
Foi o trabalho de ator que segurou minha cabeça, meu estômago e me deixou manter minha família em meio a esse processo maluco.