Lara está trancada numa cela. Evie se encontra cercada por brutamontes duas vezes maiores do que ela. Se esta coluna fosse escrita em 1992, só restaria a ambas aguardar pelo resgate. Mas, em 2015, a primeira mocinha foge arrebentando a parede usando um cano, enquanto a segunda derruba os adversários com os próprios punhos.
Eu cofio minha barba, tomo um gole de chá preto, e começo a pensar que alguma coisa está realmente mudando nesse nosso universo pixelizado. Estaria a donzela em apuros com seus dias contados? Seria o fim da princesa que espera pelo herói salvador?
Lara, vocês sabem, é Lara Croft, protagonista de Tomb Raider, que nasceu nos anos 1990 como uma espécie de pin-up de Indiana Jones. Por mais que os jogos se esforçassem para serem bons, o foco (especialmente da publicidade) girava em torno das curvas da garota, que usava as roupas mais inadequadas possíveis para alguém que escavava tumbas pré-históricas - o que a colocava sempre nos primeiros lugares em eleições do tipo "as 10 personagens mais sexy dos videogames".
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Após quase duas décadas de jogos (e filmes estrelados por Angelina Jolie) que exploraram à exaustão seus atributos físicos em detrimento de qualquer outra coisa, Lara ganhou um celebrado reboot: em Tomb Raider (2013), ela deixa de ser um bibelô sexual e vira uma exploradora faca na bota, que, além de vestir-se como a arqueóloga que deseja ser, cativa o jogador por manter-se na humaníssima corda bamba entre a resiliência e a vontade de desistir. Foi tão bem aceita por público e crítica que ganhou um novo jogo, o excelente Rise of the Tomb Raider, lançado nesta semana, já candidato a jogo mais divertido do ano e de onde a cena do primeiro parágrafo foi extraída (bônus: ela ainda salva um sujeito da cela ao lado).
Evie é Evie Frye, uma das protagonistas de Assassins Creed - Syndicate. A franquia, uma das mais bem-sucedidas do mundo, nunca havia colocado uma mulher no papel principal de algum jogo pertencente ao cânone da série. Para piorar, no ano passado, meses antes do lançamento do game anterior a Syndicate, Assassins Creed - Unity, o diretor criativo do jogo afirmou que a razão de não haver assassinas mulheres é que a animação de personagens femininas demandaria muito trabalho.
A declaração repercutiu mal. Tão mal que agora, na aventura que se passa na Londres da Revolução Industrial, há uma inédita divisão de holofotes e responsabilidades entre um homem e uma mulher: Evie e seu irmão gêmeo, Jacob. Ambos são donos de personalidades afiadas e igualmente importantes para o desenvolver da história - prova, ainda, de que colocar algum protagonismo nas mãos de uma mulher não era assim tão difícil, né?
Lara e Evie são heroínas de um tempo em que já há tantas mulheres jogando videogame quanto homens - ou mais, de acordo com dados divulgados no final de outubro pela fundação Pew Research Center. Segundo a pesquisa, nos EUA, 42% dos donos de consoles são mulheres, contra 37% de homens.
Nenhum mistério, portanto, que esse público esteja sendo contemplado como deve, com personagens fortes e complexos, e não mais como coadjuvantes de luxo ou encarnando fantasias sexuais. O perfil do jogador mudou e é preciso se adaptar - e isso inclui mexer em blockbusters do tamanho de um Tomb Raider e um Assassin's Creed, quer dizer, não é pouca coisa.
Claro que esse avanço não veio de graça. Veio porque o mercado aprovou (no caso de Lara) e porque muita gente gritou (no caso de Evie). O que não significa o fim dos jogos com mulheres frágeis esperando por um salvador - algo que, honestamente, não há nenhum problema. O importante é que, no futuro que se desenha, teremos também, e cada vez mais, espaço para protagonistas femininas. Desculpa se isso ofende alguém, mas está chegando o fim do mundo como a gente o conhece (e eu me sinto bem).
Jogatina
Gustavo Brigatti: agora é que são elas (sinta-se bem por isso)
Lara Croft e Evie Frye são exemplos de figuras femininas que precisamos ver com mais frequência nos videogames
Gustavo Brigatti
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