Faz duas semanas que o Carlos Urbim morreu.
Eu viro e reviro essa ideia, tento me habituar, e em todos os lados o que eu encontro é sempre desconcerto. A morte do Urbim é uma ofensa, uma impossibilidade, um absurdo em seus próprios termos. Dentro de casa, cada peça em que entro acomoda coisas que ele e sua Alice trouxeram: cerâmicas, cartões, quadros, louças, dobraduras, bonecos, livros, bolinhas de gude, gamelas, achas de lenha.
Impossível deparar com esses mimos e não lembrar do significado de cada um - porque todos os presentes que vieram dos Urbim possuem histórias que tiram os objetos do estado de objetos e os transformam em preciosidades.
O Urbim acreditava nisso, nas histórias que recheiam as coisas e nas coisas que recheiam as pessoas. Por acreditar nisso, ele criou os filhos contando histórias. E mesmo quando o Emiliano e o Glauco cresceram, ele continuou com suas narrativas, todas elas, para crianças ou para adultos, contadas do mesmo jeito, com a mesma entonação admirada. Enredo, palavra, texto, origens, traço, arte: estas eram as crenças do Urbim.
Leia outras colunas de Cíntia Moscovich
A casa da avenida América guarda os tesouros urbinianos, objetos e brinquedos cheinhos de histórias que ele colecionou com sua Alice ao longo do tempo e ao redor do mundo. A casa é o relato de um casal que se amou com alegria, que teve filhos queridos, guris que se tornaram homens bons. Por sua generosidade criativa, pelo profundo senso de justiça (e que gerava inflamadas broncas), pela risada que transformava em dia a mais negra noite, Urbim viveu cercado de afetos.
Soube cultivar amizades que o estimavam com sinceridade, amealhou leitores que cresceram adorando suas obras. Não é pouca coisa para uma vida. Como herança maior, nosso querido deixa para seu netinho Miguel um livro chamado Avô Aprendiz, escrito numa caligrafia caprichada e no qual conta a própria história.
É um legado de amor, um testamento de nobreza, que pode nos consolar um pouco. Um pouco. Por agora, a perda do Urbim ainda me soa como uma vileza. Quem, nas reuniões com nossos amigos, vai gargalhar convocando o sol para iluminar a noite?
Coluna
Cíntia Moscovich: a ausência de Urbim
A colunista escreve quinzenalmente no 2° caderno
Cíntia Moscovich
Enviar emailGZH faz parte do The Trust Project