Confira abaixo a entrevista que Carlos Urbim concedeu ao caderno Cultura, na edição de 31 de outubro de 2009.
O escritor Carlos Urbim, patrono da 55ª Feira do Livro de Porto Alegre, fala do gosto de escrever e contar histórias para crianças: "Quero que pais, mães e avós espichem o tempo para poder contar histórias. Sem a literatura oral, não existiria a lenda, o causo".
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A casa dos Urbim é a casa dos Gepeto. O jornalista e escritor Carlos Urbim, a mulher dele, a jornalista Alice Urbim, os filhos, Emiliano, 30 anos, jornalista, e Glauco, 28, diretor de produção de TV e cinema, foram espalhando pinóquios, bonecos, casinhas, céus, estrelas, cavalos de pau, bolitas, máscaras, lagartixas, garrafas, espelhos, balões, carrinhos, canecas, palhaços, girafas, gatos, pandorgas por toda a casa. Todos os espaços são tomados por centenas desses seres de madeira, pano, papel, ferro, vidro, barro em meio a telas a óleo, gravuras, fotografias, reproduções, esculturas, santos, livros, plantas, cores, cores, cores. Não há parede sem vida na casa dos Urbim, onde essa entrevista foi feita, por mais de duas horas, na noite da última terça-feira.
A conversa com o patrono da 55ª Feira do Livro foi conduzida pelas vozes das criaturas que habitam a casa do bairro Floresta, em Porto Alegre. Urbim, consagrado contador de histórias para crianças, é criador e personagem de muitas dessas vozes. Quem conversou com Zero Hora foi o guri de Livramento, o filho de Marino e Amália, o enteado de Paulo, o irmão de Soelci, Paulo, Orlando e Maria Aurora. Urbim falou da infância, do pai que nunca mais viu depois dos quatro anos, do primeiro emprego, do primeiro livro e das referências que sustentam o tronco vigoroso desse fronteiriço cordial, delicado, solidário e engraçado, que também produz para adultos, sempre com a mão sensível de quem antes de mais nada quer contar um causo. Quando a fotógrafa Adriana Franciosi, ao ver porta-retratos espalhados sobre uma mesa, indagou se Urbim tinha alguma foto da infância, o patrono respondeu:
- Não... eu era um guri pobre.
A síntese da conversa, nessas duas páginas, apresenta o guri de Santana disfarçado no vozeirão e nas gargalhadas do homem de 61 anos que vai comandar a Feira a partir de hoje.
Que cores o guri daltônico está vendo agora, às vésperas da Feira do Livro?
São as cores da alegria. Estou me sentindo muito honrado porque 2009 foi especial para mim. No dia 28 de maio, tomei posse na Academia Rio-Grandense de Letras, na cadeira de Alceu Wamosy. E meu nome foi confirmado como patrono da Feira de número 55. A cor seria de alegria também porque já estava programado para ser reeditado Um Guri Daltônico, meu primeiro livro, em edição comemorativa dos 25 anos.
Esse é o teu livro queridinho?
Não é tanto o queridinho, mas o que mais me caracteriza, porque, além de ter sido o primeiro, é autobiográfico. O guri daltônico sou eu. Foi a partir do convívio com meus filhos, de contar histórias à noite para eles dormirem, que nasceu a vontade de escrever.
No que o jornalismo influenciou tua literatura?
Na tentativa de abranger o maior número possível de leitores, na procura pela simplicidade. No meu caso, ao escolher escrever para crianças, a simplicidade aliada à graça, ao humor. O grande mestre disso no Rio Grande do Sul é Mario Quintana. Ele soube ser profundo com uma singeleza comovente. A poesia dele para as crianças tem o olhar moleque da poesia. É impressionante o exercício de texto em O Batalhão das Letras, um poema para cada letra do alfabeto.
A criança de hoje, do mundo virtual, não é outra?
Não. "Era uma vez" é a introdução para trazer a criança para perto de ti. O que mudou é a falta de tempo da vida contemporânea, o tempo tirado do pai, da mãe, do avô, da avó. Talvez eu seja escritor de livros infantis porque quero de alguma forma estimular a recuperação disso. Quero que pais, mães e avós espichem o tempo devagarinho para poder contar histórias. Sem a literatura oral, não existiria a lenda, o causo.
Quem contava histórias para ti?
Minhas avós, minha mãe, meu pai. Depois, a partir dos quatro anos, não tive mais convívio com meu pai, Marino Urbim, que se separou da minha mãe, Amália. Mas aí tinha meu padrasto, Paulo Vianna. Os adultos tinham disponibilidade para contar. Frio de rachar, o minuano gemendo por todas as frestas, a gente na cozinha em torno do fogão, e as histórias iam se sucedendo. Ou calorão no pampa, e então pegava-se a fresca. Levávamos as cadeiras para a frente da casa. O sarau se prolongava até uma, duas da madrugada. E a gente sentadinho ali ouvindo causos, anedotas, lendas. A gente ia dormir apavorados de medo do homem da capa preta, da mula sem cabeça, de entrar na caverna da Salamanca do Jarau. Hoje não se tem mais tempo. Perdemos
dentro de casa as referências das conversas.
Quando viu TV pela primeira vez?
Só vi televisão quando vim morar em Porto Alegre, em 1967, com 19 anos. Em Livramento eu ficava imaginando: como é que cabe numa caixinha uma cena de filme em cinemascope?
Quem é a tua referência de artista, de magia da arte em Livramento?
O Biduca, o teatro da fronteira, um circo-teatro simples, pobrinho, com cadeiras coloniais. Biduca era o líder da uma trupe. Ficava um tempo em Livramento e depois desaparecia e se apresentava em Quaraí, Dom Pedrito, Bagé. Apresentava A Canção de Bernadete, A Vingança do Judeu, Deus lhe Pague. Eu morava na frente da Praça Getúlio Vargas, a uma quadra do presídio municipal. Somos cinco irmãos, eu sou o bem do meio. Os três primeiros filhos são Urbim, filhos do meu pai. Os outros dois, do meu padrasto. Quando meu pai se separou da minha mãe, eu tinha quatro anos e nunca mais tive convívio com ele.
Qual é a origem dos Urbim?
Urbim é basco. A Fronteira Oeste tem muitas famílias bascas. Etchverry, Etchverria, Garay, Irigaray, Alzogaray, Goycochea, Ucha, tudo é basco. Em 1995, na Feira do Livro, me apareceu uma senhora baixinha, típica espanhola, hablando em espanhol. Disse que estava ali porque tinha visto meu nome no jornal e porque meu Urbim era com "m". Me disse: "A lembrança mais linda da minha infância é dos domingos de tarde quando meu pai me lavava para tomar sorvete na Heladeria Urbim, na Plaza Mayor de Portugalete". Viajei para a Espanha e fui a Bilbao, capital de Vizcaya. Portugalete é a Canoas de Bilbao, um lugarejo pequeno, bonito. Me fui para a Plaza Mayor, procurando, procurando. Me deu uma vontade de chorar. Encontrei um toldo velho, todo esfarrapado. Só dizia: helados. O resto estava rasgado. Não tinha o nome.
E a vinda para Porto Alegre?
Vim fazer vestibular para jornalismo, em 1967. Vim para estudar e trabalhar. Trabalho desde os 12 anos. Colava manualmente rótulos nas garrafas da cervejaria Gazapina. Era um grude feito com água bem quente. Meu padrasto era guarda-livros na Gazapina. Minha mãe era telefonista da telefônica, tinha ondas no cabelo, no meio da cabeça, por causa dos fones. Meu pai era motorista de táxi. Ele já tinha problemas de alcoolismo que se acentuaram depois da separação. Como forma de proteção, me afastei do ramo Urbim. Só reencontrei meus tios quando vim morar em Porto Alegre. Passei no vestibular na UFRGS e concluí o curso de jornalismo em 1970. Estou liderando o reencontro da turma para comemorar os 40 anos de formatura. Eram da minha turma Juarez Fonseca, Gilberto Leal, Roberto Brenol de Andrade, Fernando Albrecht, Ademar Vargas de Freitas, Letânia Menezes, Vera Morganti, Berenice Mércio Pereira. Em Porto Alegre, eu estudava e trabalhava na carteira de câmbio no Banco Lar Brasileiro.
E só colou rótulos na Gazapina?
Não, fui evoluindo e, quando saí, estava assumindo a contabilidade da casa. Tinha letra caprichada. O irmão do meu padrasto era vigário da paróquia. Quando eu não trabalhava na Gazapina, às sextas e sábados eu trabalhava na igreja, enfeitando a igreja para casamentos. Estendia o tapete vermelho, arrumava o genuflexório para os noivos receberem a bênção. E botava fitas, com laçarotes e uma florzinha, na igreja do tio-padre.
Quais eram as tuas leituras?
Quando vim para cá, eu não era muito letrado, nunca tive muito livro na vida lá em Livramento. E vim para a biblioteca da Faculdade de Filosofia, que abrigava o curso de Jornalismo, e que foi o núcleo da Biblioteca Central da UFGRS. O mundo se abriu para mim. Em Livramento, eu comprava, com algum dinheirinho que me sobrava, algumas coisas nas duas livrarias da cidade. O livro brasileiro que talvez tenha definido minha escolha pelo jornalismo foi Éramos Seis, da senhora Leandro Dupré, a história de uma família paulista. Foi um texto que me encantou.
O que leu na biblioteca da UFRGS?
Li todos os do Erico Verissimo. Me emocionava com a trilogia O Tempo e o Vento. Li mais de uma vez Vidas Secas, do Graciliano Ramos. Era permitido aos usuários da biblioteca caminhar entre as estantes e pegar e levar o livro até a bibliotecária. Tínhamos aulas de português, literatura e linguística três a quatro vezes por semana. Tive grandes professores, como Albino de Bem Veiga e Pradelino Rosa. Eles iam indicando outros autores. Li Simões Lopes Neto. Lia muito por minha conta autores que se expressam em português e muita literatura latino-americana. Lia Hermann Hesse, que estava na moda, com Demian, Lobo da Estepe, Sidarta. Me encantei lendo D. H. Lawrence. Era apaixonado por Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Cecília Meirelles. Só não podia ir sublinhando o que me interessava porque nunca o livro era meu.
Onde foi o primeiro emprego como jornalista?
O prédio ainda está ali, na Sete de Setembro. Na porta de cá era o Banco Lar Brasileiro. Na porta ao lado, era o departamento de promoções dos Diários e Emissoras Associadas. Deixei de entrar na porta do banco e passei a entrar na outra porta. Meu primeiro trabalho, em 1968, ainda como estudante, foi entrevistar candidatas dos concursos de beleza, miss Porto Alegre, miss Rio Grande do Sul, a mais linda prenda. Eu não tinha roupa para as festas. Meu chefe, Luiz Carlos Vaz, me emprestava um smoking. Ele era mais gordo do que eu, que era magérrimo. Uma vez fui num baile em Rio Grande com smoking emprestado. Tinha que entregar um prêmio. Quando me levantei, senti que a faixa do smoking caiu pelas pernas. Tive que disfarçar, sentar de novo e ajeitar a faixa.
Fala de um momento de forte emoção como escritor.
Em 1983, fui convidado pelo regente José Pedro Boéssio, da Unisinos, para fazer textos costurando uma música e outra que o coral iria apresentar. Em 1984, quando lancei O Guri Daltônico, estou autografando o livro na Feira e ouço aquelas vozes. Era o coral da Unisinos cantando na minha sessão de autógrafos. Chorei muito. Sou muito chorão. Me emociono com extrema facilidade. E os meus filhos pegaram isso de mim.
De onde vem o cuidado com o texto, com a palavra certa?
Nos primeiros dias de janeiro de 1970 passei a trabalhar na Folha da Manhã (depois de trabalhar no Diário de Notícias). Trabalhava na Rádio da Universidade (da UFRGS) e era repórter da Folha. Meu texto e minha datilografia limpinha chamavam atenção. Passei a ser copidesque. Eu pegava os textos dos repórteres para desentortar, para encolher, para aumentar. Se eu escrevesse e tivesse três rasuras na lauda, batia tudo de novo.
Mas de onde vem a inspiração para o texto limpo?
Da vida. Do jeito como eu colava os rótulos lá na Gazapina. Meus rótulos não saíam tortos. Tinha uma estética, era tudo organizadinho, e eu fazia tudo com extrema rapidez.
E a importância da pandorga na tua vida e na tua literatura?
É o símbolo mais bonito da minha infância de guri pobre. Com qualquer tostão tu conseguias a tua pandorga. Ela é a Páscoa, é a Semana Santa de Livramento. Tem um dia para levantar, a Sexta-feira Santa. O historiador Galvão Krebs localizou na região de Valencia, na Espanha, a origem da pandorga na Semana Santa. A visão mais linda da minha infância é o céu cravejado de pandorgas.
A formação católica é forte.
Ia à missa aos domingos pela manhã ou não iria ao cinema à tarde. Daí vem também esse rigor estético de arrumar as coisas com simetria. O tapete não ficava com uma ondinha, para a noiva não derrapar. Isso vai se refletindo no meu texto.
O grande livro que leste na idade adulta.
Cães da Província, de Luiz Antonio de Assis Brasil.
O livro que gostaria de ter escrito.
Perseguição e Cerco a Juvêncio Gutierrez, de Tabajara Ruas.
A pérola da tua biblioteca.
A obra completa da poeta uruguaia Juana de Ibarbourou.
O livro que ainda não leu, mas deveria ter lido.
Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa.
O grande autor.
Manoel de Barros, o poeta pantaneiro
Veja entrevista feita com Carlos Urbim em 2011
Memória
"Sem a literatura oral, não existiria a lenda", disse Urbim
Em entrevista publicada em 2009, quando foi eleito patrono da Feira do Livro, Carlos Urbim falou sobre sua história, a paixão pelos livros e pela escrita
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