No princípio era o verbo. Aí o homem conjugou-o com o predicado e os complementos para escrever frases, parágrafos e, finalmente, uma história inteira. E o homem viu que isso era bom. Então, pensou que aquele relato tão precioso poderia entrar por um ouvido e sair pelo outro do seu interlocutor, perdendo-se para sempre. Resolveu registrá-lo na pedra. Era muito trabalhoso. Usou então a argila, mas na primeira chuva seu trabalho foi por água abaixo. Veio o papiro e, logo em seguida, o papel, mas era uma mão de obra copiar o mesmo texto várias vezes para possibilitar que chegasse a um número maior de pessoas. Aí o alemão aquele bolou o tipo móvel e ficou mais fácil de armazenar as letrinhas no seu invólucro perfeito, um bloco de folhas finas protegido por capas mais grossas, fácil de manusear, fácil de carregar, facílimo de ler.
O homem, então, criou o livro. Soprou a poeira de sua superfície e deu-lhe vida própria.
Estava criado um objeto mágico, capaz de abrigar todo o conhecimento do universo, todas as emoções humanas, todas as realidades e todos os sonhos, toda a imaginação e todas as aventuras, todas as crenças e todo o ceticismo.
Tudo pode ser encontrado nessa verdadeira caixinha de surpresas: a origem do mundo e a origem das espécies, a guerra e a paz, o som e a fúria, o orgulho e o preconceito, o senhor das moscas e o senhor dos anéis, a ilíada e a odisseia, a divina comédia e a comédia da vida privada, a interpretação dos sonhos e o sonho eterno, a matéria escura e a luz de agosto, o homem invisível e o homem que calculava, a idade da inocência e a idade da razão, o pequeno príncipe e o grande mentecapto, a revolução dos bichos e a revolução do amor, as mil e uma noites e cem anos de solidão.
É, também, o endereço comum de personagens reais ou fantásticos que em algum momento cruzaram por nossas vidas: Dom Quixote de La Mancha, Sherazade, Harry Potter, Ulisses, Lolita, Madame Bovary, Hamlet, Otelo, Frankenstein, Dorian Gray, Peter Pan, Ed Mort, Sherlock Holmes, James Bond, Robinson Crusoé, Gulliver, Percy Jackson, Ana Karenina, Capitu, Blimunda, Fausto, Aureliano Buendía e centenas de outros que habitarão para sempre os nossos corações e mentes.
O livro, essa divina criação humana, esse enigma a ser decifrado, esse manual de civilidade, esse objeto perfeito que haverá de resistir ao apocalipse digital, espera por nós entre os jacarandás floridos do jardim do éden gaúcho, que modestamente chamamos de Praça da Alfândega.