No banco do passageiro, Clara (Sonia Braga) aconselha ao seu sobrinho Tomás (Pedro Queiroz), que dirige o veículo, a marcar território com a nova namorada: “Toca Maria Bethânia pra ela, mostra que tu é intenso”. Essa é uma das frases mais celebradas do filme Aquarius (2016). Não está errada: a interpretação de Bethânia é intensa. Não só isso: é romântica, é alegre, é interiorana, mas também dramática, sombria e melancólica. Quando canta, ela se multiplica. É o que se pode perceber em Noturno, seu novo disco está sendo lançado nesta sexta-feira (28).
Gravado entre setembro e outubro de 2020 e em maio de 2021, no estúdio da gravadora Biscoito Fino, no Rio de janeiro, o disco traz músicas que a cantora apresentava no espetáculo Claros Breus (2019), entre outras inéditas. O álbum com 12 faixas é intimista e, em alguns momentos, minimalista — ora voz e piano, ora voz e violão. Há composições de sua velha parceira Adriana Calcanhotto (A Flor Encarnada e Dois de Junho) e de nomes como Tim Bernardes, Xande de Pilares, Zeca Veloso, Chico César, entre outros.
Em entrevista a GZH, Bethânia destaca que Noturno representa o momento dramático, triste e sombrio atravessado na pandemia. Ela também falou sobre as faixas do álbum e sobre o que sentiu nesse período.
De Claros Breus para o estúdio: como foi a concepção de Noturno?
Esse disco vem de um repertório de inéditas que realizei no Manouche, aqui no Rio de Janeiro. Fazer aquele show na boate para cem pessoas foi uma delícia. Me fez muito bem, fiquei tão contente de cantar na noite. No dia 13 de março de 2020, estava em São Paulo para fazer um show à noite que foi cancelado. Voltei para casa e nunca mais fiz nada. Quer dizer, gravei o álbum. Foi uma angústia! Muito difícil para uma cantora, uma mulher que se expressa com a voz, não poder atuar. O disco virou uma saída, uma emergência, uma necessidade. Tinha a base desse repertório e comecei a receber outras canções inéditas.
Como foi sair da quarentena para as gravações?
Tivemos de achar condições dentro desse pandemônio para gravar com segurança. Felizmente a Biscoito Fino (gravadora) conseguiu adequar seu estúdio para mim e para os músicos, além dos técnicos, com todos os testes e cuidados. Realizar um disco que tem uma dramaticidade natural por tudo que estamos vivendo desde então. Foi gravado em outubro do ano passado, sem poder olhar no olho do músico, pois as salas eram separadas. É um disco mais voz e violão e voz e piano, uma hora ou outra entra umas cordas, uma sanfona, uma voz.
Que momento de sua vida Noturno representa?
Registra muito esse momento dramático, triste e sombrio que estamos atravessando. O nome Noturno vem daí, de uma tristeza causada por tudo isso. Também uma tristeza pessoal, artística, humana e brasileira.
Um disco que você canta a tristeza.
Eu canto a minha vida e a vida de todo mundo. Não canto meus detalhes. Não canto as miudezas de minha vida, ou seja, o que acontece particularmente a mim. Canto o que me acontece como artista. Agora, minha vida é o combustível para isso. O que vivo verdadeiramente é o que me dá o grande impulso para alegria ou tristeza. Grande impulso para melancolia ou para a festa. O artista tem que ter a mão da vida.
A faixa de abertura, Bar da Noite (Bidu Reis e Haroldo Barbosa), traz uma atmosfera boêmia e melancólica. De que maneira essa canção funciona como a introdução ao álbum? Que cartão de visita é esse?
Bem solitária, né? Quero ficar sozinha, não tem saída, por todos os motivos. E também porque é meu desejo. Quero ficar só. Me deixe sozinha. Pronto. Daqui, faço isso. Na faixa seguinte, canto o Sopro do Fole. Começo minhas memórias, começo meu sentimento a se transformar, a passar por milhares de avenidas diferentes.
Noturno conta com uma composição de Tim Bernardes, Prudência. Ele ganhou destaque na última década, seja em projeto solo ou com sua banda, O Terno. Como vocês se conheceram?
Ele é extraordinário. Maravilhoso. Muito criativo. Ele é amigo dos filhos de Caetano, do Tom e do Zeca. Tivemos uma reunião familiar em que ele estava, e o conheci. Fiquei muito impressionada. Tim cantou algumas coisas junto com os meninos. Me tocou muito. Em seguida, vi um clipe que ele desarmava o piano (Recomeçar). Aquilo me chamou muito a atenção, me comoveu muito. Cheio de uma nudez, uma demonstração de arte como se faz, onde atinge, como modifica, como extrapola e como é capaz de salvar, de achar um caminho para uma pessoa, dirigir e orientar. Fiquei muito impressionada com a naturalidade dele, com a capacidade de se expressar. As canções dele são muito bonitas.
Cria da Comunidade tem participação do Xande de Pilares, que compôs a música com Serginho Meriti. É uma crônica bem alto astral de uma jovem que venceu na vida, mas não quer deixar a comunidade onde vive. Que história vocês procuraram apresentar com esta faixa?
Foi uma grande alegria receber essa música, dentro dessa loucura que se vive hoje no Rio de Janeiro. Essa realidade da canção está viva, latente. Isso é um retrato que salva a alma da gente no meio da dor. É lindo! Ela quer fazer tudo no mesmo lugar: quer estudar, quer viver, quer aprender, quer ser feliz, sabe por onde conseguir e deseja ficar no mesmo lugar (risos). Adoro isso! Não quer ir para Ipanema ou para a Barra da Tijuca, ela quer ali! Ela sabe que ali é o núcleo. Sou interiorana, meu núcleo é Santo Amaro (BA) da purificação. Posso compreender isso muitíssimo bem.
Há duas composições de Adriana Calcanhoto no disco, que é sua parceira de longa data. Como você se conecta com as músicas dela?
Sempre canto Adriana. Ela é muito forte e especial. Quando compõe para mim, nós temos um encontro, de intérprete e autora. Para cada música, às vezes conversamos e às vezes não. Por exemplo, 2 de Junho ela me entregou pronta. Foi uma surpresa quando ela me pediu para interpretá-la. Já A Flor Encarnada nós tivemos uma reunião em que falei: “Adriana, faz uma canção amorosa, daquele jeito seu de compor sobre o amor que tem um veneno bom” (risos).
Você entrega uma interpretação dramática e crua em 2 de Junho. A faixa aborda a história de Miguel Otávio Santana da Silva, que morreu aos cinco anos ao cair do nono andar de um prédio no Recife (PE). O que representa para você essa música?
É uma crônica muito forte. Como se fosse um filme, um livro, uma peça. Aquilo ali é um acontecimento de muita força. Uma realidade muito dura! Muito cruel! É uma crônica sobre a desigualdade na pandemia. E sobre a morte de uma criança por indiferença. É um acidente, mas tem indiferença.
Carlos Jardim está preparando um documentário sobre a sua trajetória. Como está esse projeto?
Carlos é lindo. É um belo rapaz. Sou muito grata a ele. Tem um entusiasmo bonito com o meu trabalho, o que me deixa contente. Mas sei pouco. Ele só me pediu autorização para começar a realizar um trabalho. Com a pandemia, parou-se tudo. Estamos esperando aí, estou aguardando o que ele quer para me solicitar e for possível, porque sou uma espectadora dos limites que a pandemia impõe. Sou a favor da vacina, sou quieta, tem de ter distanciamento, tem de ter cuidados exagerados. Quanto mais exagerados, melhor. Menos risco.
Que dificuldades você sentiu na pandemia?
É insuportável! Não sou uma pessoa de ficar saindo, de jantares ou encontros. Nada disso, sou caseiríssima, interiorana. Mas não poder fazer nada disso é cruel. Esse “não pode” é horrível. Como cantora, desastroso. Todo o meu trabalho é ao vivo, em cima do palco, com milhares de pessoas. Nem mais palco tem. Pelo menos três casas, onde tinha show previsto, viraram supermercados. É uma dor muito grande. Eu cantei ali! Milhares de músicos se expressaram ali! Virou um supermercado... Tem sido uma realidade duríssima de se viver. E o Brasil num momento muito difícil, fragilizado. Floresta queimando... tá errado.
Um período de aflições.
Me deixa triste. Fico desanimada. Ao mesmo tempo, tenho uma natureza muito energética, positiva e vigorosa. Sou corajosa, gosto de enfrentar (desafios). É um duelo aqui. Mas tem essa parede. A pandemia é uma parede. Não dá para passar. Tem de esperar isso terminar, não sei quando e como. Não sei quantas mortes mais. É doloroso.
Você imagina seu retorno aos palcos?
Imagino, lógico que não vou perder minha perspectiva nem meu horizonte. Senão, desisto de viver. Agora não sei quando. Isso me entristece.
Mas não sente que isso vá passar em breve?
Sou naturalmente otimista. Eu tenho esperança. Tenho fé, tenho fé! Creio em forças boas, em boas energias. Creio em mudanças. Já vimos o mundo passar por tragédias, estamos assistindo agora. Tem saídas. Sou mais por acreditar.
O que faz amenizar a angústia?
A minha fé. Tenho as minhas certezas, as minhas conquistas. Os meus medos também me ajudam a andar.
Seus medos?
Porque quando você tem medo, você não gosta. Medo não é bom, você quer se livrar dele. Nem que você vá quicando (risos). Anda! Sai de mim!