Por Carlos Alberto Gianotti
Professor de Física e editor, autor de “Um Rio Circunferencial” (WS Editor)
Oprofessor de Filosofia daquele colégio em Madri planejou seu suicídio para 31 de julho do ano seguinte, conforme relata em uma espécie de diário iniciado em 1º de agosto: até aquele dia, cuidará de organizar aspectos práticos de sua vida absolutamente inútil, para não deixar nenhuma pendência. Assim começa o precioso romance Los Vencejos, do escritor espanhol Fernando Aramburu, publicado no Brasil com o delicado título Quando os Pássaros Voltarem. Aramburu, vencedor de reconhecidos prêmios literários, vive há muito na Alemanha. É autor de Pátria, adaptado pela HBO como série para o streaming.
Quando lemos um romance no qual a narração está na terceira pessoa, encontramos nesse narrador um espectador que a tudo vê ou viu e, por isso, pode descrever os acontecimentos constitutivos do enredo; ao leitor parece que ele não é responsável pelo que ocorre, pelo desenrolar da história, apenas conta tudo a seu bel-prazer. Agora, nas obras ficcionais em que a narração é feita na primeira pessoa, entende-se que o narrador participou de alguma forma do que descreve. Mas, em ambas as modalidades de desenvolvimento da prosa, será o autor que se mostrará aqui ou ali, com suas ideias, a sua cosmovisão. Nessa medida, os personagens, inseridos em cada momento histórico do relato, constituem-se em transmissores de ideias formuladas pelo autor. Ainda, as obras literárias podem vir de uma inspiração do autor ou de uma intenção objetiva. O romance ou a novela intencional o autor escreve enquanto militante, com o propósito específico de dar significado ou denunciar, mediante o recurso ficcional, determinada conjuntura humana previsível ou efetiva. É o caso, por exemplo, do estilisticamente harmonioso clássico 1984, de George Orwell, ou de algumas novelas escritas após 1995 por José Saramago.
O romance Quando os Pássaros Voltarem, de Aramburu, é uma narrativa inspiracional na primeira pessoa, em que o relato do personagem-narrador se dá por meio de registros diários dos 12 meses que compõem a obra. O leitor se encontra com o cotidiano do suicida em potencial, mas imbricado com passagens de sua vida passada; o conjunto forma o entrecho do romance, que tem tons de crueza ao falar do comportamento humano e dos personagens, de sexualidade, de violência doméstica e das relações familiares, de política, de misoginia, de acossamento no ambiente escolar, de infidelidade, de animais de estimação.
Com 54 anos, o professor de Filosofia para alunos desinteressados e barulhentos transparece melancolia e desesperança – quem sabe tomado pela depressão, diagnosticarão alguns; divorciado há muitos anos, tem um filho a quem atribui limitações cognitivas, que não fez faculdade, vive de trabalhos eventuais e mora com amigos em uma ocupação. O professor tem em sua cachorra uma companheira fiel, e apenas um amigo. Distante do único irmão a quem detesta, relembra o pai, ora com ódio, ora com ternura. A mãe amorosa viveu demente seus últimos dias no ano em que o professor organizava seu suicídio. Dos ex-sogros e da ex-cunhada guarda deploráveis lembranças. Quanto a colegas de magistério, na sala de professores só os escuta falar do clima, de futebol, de culinária e dos comentaristas de TV.
O estilo apurado e cativante do autor esboça, não sem traços de elegante ironia, uma vida classe média contemporânea ocidental, circunscrevendo a conjunção existencial-comportamental no universo das pessoas instruídas num verossímil dia a dia durante um ano. Todavia, como vem a ser uma atualidade de indivíduos daquele extrato social, isso nos leva a conjecturar sobre como se estruturaria um enredo equivalente em que o personagem narrador não fosse um professor, mas, digamos, um gari.
O valor de obras literárias de fundo como esta de Fernando Aramburu está em levar o leitor, para muito além do mero entretenimento, a refletir e estabelecer relações – e o estabelecimento de relações é essência do aprendizado. Alguns dizem que, quando estamos lendo um bom livro, é como se estivéssemos na companhia de um amigo; na verdade, as grandes obras literárias que são capazes de nos arrebatar o fazem porque, enquanto as lemos, somos tirados da nossa inelutável condição de abandono humano, e até esquecemos que existimos.