Por Everton Luiz Cidade
Autor, entre outros, de “Santo Pó/p” (2012) e “Quió” (2017)
João Pedro Wapler faz parte de uma geração de poetas/escritores jovens que estão nos bares e nas casas de shows underground. Experimentando sua escrita em zines e livros, tanto virtuais quanto físicos. Experimentando a vida.
Esses poetas/escritores são um outro lado, obscuro, das boas vibrações corporativas. Eles têm todas as informações sobre como ser normal e feliz dentro dos padrões desse admirável mundo novo e antisséptico. Mas preferem escapulir às normas. Quem escolhe tem poder.
Entre esses autores (mexa-se, procure-os!), João Pedro Wapler é uma voz das mais altas e corajosas, registrando a lida dos que são de seu convívio, dos que não são, mas, principalmente, registrando sua lida sensorial e espiritual do fazer das coisas. Do desfazer das coisas. Do refazer as coisas. Do tempo, no tempo. Do tempo, fora do tempo.
Fábula do Afeto é um livro fora de seu tempo. E, por isso mesmo, estará em todos os tempos. Está eterno. A prosa poética da obra parece escrita por um Rimbaud que foi amado. Que foi tocado pelo amor, pelo sexo e pelo afeto. Que perdeu tudo isso.
E curtiu... As palavras mutantes e os ritos de afeições e ausências, nesses escritos, são dicas de sobrevivência de um autor, de um arauto, que se despiu de pesada armadura social e se abriu angelicamente. Ficando “nu por dentro”.
Fazer poesia é fazer alquimia generosa de si mesmo. Colocar-se em exposição, sob lupas e satélites. O bom poeta é criatura que se permite ser esmiuçado. Mesmo que isso lhe traga traiçoeiro desconforto. Partilhar com o público esse desconforto faz a via de mão dupla, de leitor e escritor, ser uma via de várias mãos. Vários lances. Vários subterfúgios. Vários sentidos e significados. Uma aliança de energia, forte energia, montes de energia, entre percepções, que podem e devem ser fugazes, ou de uma vida toda. De qualquer forma, uma vida toda é todo o tempo e tempo nenhum. É só medida de universo.
Falo eu, aqui, de novo, sobre o tempo! Mas a repetição é por que Fábula do Afeto nos tira tempo. Nos dando tempo. Ganhamos presentes sutis, mas espalhafatosos em sua amostragem psicológica nesse passeio. Nos é permitido entrar na alma de João. Também nos é permitido entrar em seu corpo e perceber suas quenturas. Suas excitações. Suas ranhuras. Suas fissões e suas fissuras. Estamos sempre famélicos de experiências alheias. Aqui, é grande a oferta.

Translúcido, o primeiro livro do autor, lançado pela editora Letra 1 em 2014, nos dava já um pouco disso, em sua métrica certeira e em seus versos apurados em forma e ritmo. Translúcido é um livro conciso, elegante, somando silêncios e sendo ofegante quando necessário. Relaciona-se com o mínimo sendo condensado, para que nosso prazer em lê-lo seja alcançado por meio de um impacto ao mesmo tempo suavizante e firme. Como a descoberta de uma nova sensação emotiva sobre o próprio mundo que está sendo ampliado.
Fábula do Afeto é mais denso, mais delirante, mais próximo e mais abrangente. O foco está na dualidade apaixonada, de perto ou de longe. Junto ou separado. Sozinho ou com milhares de outras pessoas. Isso nos inebria na leitura. Leitura de vertigens. A prosa aqui encontrada é de uma beleza simples, enxuta, lírica e acessível, intensificando ainda mais o que está sendo dito de pesaroso e forte.
Toques de surrealismo são sincronizados com detalhes, lampejos de local e espaço, onde os acontecimentos que inspiraram o livro se passaram. A beleza de cada frase se aproveita de mínimas passagens de grotesco para nos colocar nesse mundo mágico de cor sépia. Um livro da alma. Um livro do coração resiliente. Um livro do profundo desconhecido, que nos coloca em contato com a pequenez divina, que nos subjuga e nos expõe frágeis e mundanos. É um livro sobre o que todos fazemos, sentimos, passamos. Sobre o que todos causamos.
Fábula Do Afeto é a fábula que devemos ler. Recomendar. Reler. Para sacarmos que amor e resignação são os deusinhos do nosso cotidiano. Fábula visceral, moderna e atemporal. Em um livro tão bonito quanto um carinho de reconciliação.