Por Lourenço Cazarré
Autor de “Nadando Contra a Morte” (1998) e “Czar Alexander, o louco de Pelotas” (2018), entre outros
Bem mais do que um livro sobre a imigração italiana dirigida ao sul do Brasil no século 19, Tutti Brasiliani é uma obra cujo centro é o fantástico desdobramento dessa onda migratória no Brasil, fenômeno que transformou o país num dos maiores produtores de grãos do mundo. Mas vamos com calma.
Comecemos pela viagem dos Bortot, uma amostra do que ocorreu com dezenas de milhares de famílias. Os Bortot trabalhavam há no mínimo três séculos como meeiros na região de Belluno, nos Alpes italianos. Lá, criavam uns poucos animais, cultivavam videira e trigo e, para reforçar as proteínas, caçavam pássaros com redes. Para fazer roupas, fiavam cânhamo, lã e linho. E esfolavam raposas, toupeiras e lebres para vender a pele.
Em meados do século 19, parte dessas famílias italianas de muitos filhos, apertadas em sítios modestos, começaram a migrar para a América, na ordem de preferência EUA, Argentina e Brasil. Os Bortot, que chegaram ao Brasil em 1883, receberam do governo (financiada, a ser paga em alguns anos) o que julgavam ser uma vasta porção de terra, 20 hectares, algo impensável no país de origem. No Rio Grande do Sul, foram contemplados com glebas na Serra. Basicamente, terrenos inclinados, cobertos de mato em cafundós intransitáveis. Os alemães, que chegaram antes, a partir de 1825, receberam lotes às margens dos rios. Por isso, puderam comercializar seus produtos em Porto Alegre e enriqueceram mais rapidamente.
No meio da mataria cerrada, os filhos de Dante Alighieri tiveram de se virar. Quase todos, além das habilidades agrícolas, tinham noções de marcenaria, carpintaria e ferraria. Passaram a criar porcos, a plantar trigo e a tratar de suas videiras. Comiam polenta e bebiam vinho e grapa. E passaram a consumir os surpreendentes pinhão e palmito. O excesso de produção, quando havia, entrava no escambo por, digamos, sal e fumo. Uns abriram comércios. Outros, mais habilidosos, instalavam moinhos ou fabricavam carroças e arados. Dessas ferrarias de fundo de quintal surgiria, depois, a pujante Caxias do Sul, a Manchester guasca.
Passados uns poucos anos, ressurgiu a necessidade de buscar novas terras para a descendência crescente. Em 1920, os Bortot partiram para o noroeste gaúcho, onde podiam adquirir propriedades maiores e com terrenos planos. Alguns fixaram-se em Paim Filho, região cuja cidade mais importante é hoje Sananduva. Depois, no começo dos anos 1930, alguns Bortot partiram para o sudoeste do Paraná. Fixaram-se onde hoje é Pato Branco. Essa região era então, e seria por mais uns 20 anos, o nosso faroeste.
A descrição do crescimento das cidades paranaenses, fundadas majoritariamente por descendentes de italianos saídos do Rio Grande do Sul, é um dos pontos altos do livro. O autor fala de tiroteios, jagunços assalariados, grileiros impiedosos, tocaias, assassinatos, falsificação de documentos, terras tomadas à bala e misteriosas empresas protegidas por políticos inescrupulosos...
Os Bortot foram vítimas das guerras travadas pelas elites intelectuais gaúchas (leia-se: caudilhos ricos formados em Direito em São Paulo, em geral palavrosos e arrogantes) que brigavam por motivos impenetráveis para gringos que mal arranhavam o português. Na Revolução de 1893, os Bortot foram depenados. Repetiu-se o mesmo em 1923. O que a gringada podia fazer? Ora, que fosse se queixar ao Papa, porque não havia autoridade pública brasileira à qual pudessem apresentar a conta.
Lê-se o livro de Ivanir José Bortot como se fosse um romance. Como em um livro de ficção, a cada geração, dois ou três membros do clã se destacam. Ora é uma mulher forte que cria seus filhos sem o marido precocemente falecido. Ora é um empreendedor que funda empresas e dá trabalho a filhos, filhas, genros e noras. Ora é um nonno que guarda as memórias da família. Ora é o ingresso de um descendente na universidade.
Isso é importante: a ocasião em que um neto ou um bisneto enverga uma fatiota e senta-se a uma escrivaninha para ganhar, às vezes em um mês, no conforto do ar-condicionado, o que seus ancestrais levavam décadas para amealhar sob o sol impiedoso.
Esse livro será ampliado no futuro, tenho certeza, porque a saga dos descentes de italianos do Rio Grande do Sul – e, também, dos alemães e poloneses – ainda não foi contada. Partindo do Estado original, eles tomaram nos anos 1920 o oeste de Santa Catarina. Chegaram ao Paraná nos anos 1930 e continuaram a subir pelo mapa: Mato Grosso, Rondônia, Pará e Amazônia foram colonizados a partir de 1970. Depois, nos anos 1980, a diáspora gaúcha seguiu para o sul do Maranhão, o norte de Goiás (Tocantins) e o oeste da Bahia. E, aparentemente, termina quando chega ao sul do Piauí, em 1990. Em resumo, falta contar a epopeia dessa gente que forjou o semicírculo da produção agrícola que sustenta, há várias décadas, as contas desta nação inzoneira, cartorária e carnavalesca.
Por fim, destaco outra peculiaridade do livro. O autor exerce o jornalismo há cinco décadas. Na maior parte desse tempo, atuou em publicações voltadas à economia. Daí que seu livro, desde as primeiras páginas, dá números ao que está sendo descrito. Um porco custa tanto. Uma vaca equivale a tantas barricas de vinho. O fato de que toda coisa tem seu preço mostra como vai se formando o patrimônio de uma família. Não apenas o patrimônio palpável, físico, mas os valores morais que alicerçam o progresso. Valores como, por exemplo, a solidariedade, já que nesses grupos, por décadas, o patrimônio é um só e é de todos. Uma solidariedade que é, ao mesmo tempo, a previdência social e o plano de saúde da família. A solidariedade que aflora toda vez que a tragédia arrebenta com um deles.