Por Márcio Soares
Jornalista, doutorando em Letras (UFRGS)
O diálogo de Erico Verissimo com a modernidade através da troca de cartas com amigos está organizado, recuperado e disponibilizado em seu acervo. Entre as trocas de correspondências de décadas passadas havia maior cuidado, com mensagens aprofundadas, dedicação à escrita, ausência da brevidade. A carta em papel, por isso, adquire valor de documento oficial, revela a riqueza de textos assinados, registra memórias pessoais, complementa textos literários, enobrece a pesquisa.
A nova compilação publicada pela professora Maria da Glória Bordini e os pesquisadores do Acervo Literário de Erico Verissimo, apoiados pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), inclui as cartas trocadas entre Erico e dois grandes amigos, o escritor Clodomir Vianna Moog e o tradutor Herbert Caro. As trocas de mensagens ocorreram entre 1953 e 1958, período no qual o autor trabalhou como diretor do Departamento de Assuntos Culturais da Organização dos Estados Americanos, em Washington (EUA). No formato e-book, a obra está disponível gratuitamente em edicoesmakunaima.com.br.
Momentos de uma história de vida são meticulosamente postos em ordem cronológica, transcritos, identificados por notas de rodapé. As menções a fatos, pessoas e obras de arte (literárias, musicais, teatrais e cinematográficas) são esclarecidas, dados os mais de 60 anos passados desde que foram escritas. O método utilizado foi separar as cartas destinadas a Caro, mais pessoais, das de Vianna Moog, mais oficiais, e, dentro de cada parte, ordená-las cronologicamente. Nessa disposição, cria-se uma história do que foi, para Erico, o desafio no mundo diplomático e as relações internacionais que testemunhou e de que participou. O curso completo da correspondência às vezes não pode ser reconstituído para uma plena interpretação, pois as cartas dos destinatários não são publicadas. Ao perpassar as páginas, porém, surge uma surpreendente continuidade, com franqueza em detalhes: confidências e declarações políticas são expressas sem censura.
O escritor de O Tempo e o Vento estava em uma exaustiva missão administrativo-diplomática, posicionado à frente de acaloradas decisões políticas. Em contrapartida, adquiriu rica bagagem cultural. Além das cartas, nesse período ele escreveu a novela Noite (1954), a narrativa de viagem México (1957) e textos de conferências, papers e discursos em salvaguarda da cultura latino-americana.
São cerca de 40 correspondências despachadas. O livro ainda traz informações sobre figuras nacionais e internacionais da política, da cultura popular e erudita. A música e o cinema, enquanto paixões de Erico, estão presentes em amistosos textos trocados entre ele e seus amigos. A cumplicidade transparece em parágrafos valiosos textos escritos à mão ou datilografados.
Comparando os dois conjuntos de correspondência, é notável a diferença conforme o destinatário. “Caro se mostra um correspondente acolhedor, o que faculta a Erico uma maior quantidade de confidências e um fortalecimento dos laços de amizade mútua. Nota-se o respeito e a deferência com que escreve ao amigo. Em contrapartida, Moog manifesta um temperamento pouco flexível, defendendo fortemente sua posição oficial na OEA”, escreve a organizadora do volume.
Caro, além de tradutor e colunista, foi conferencista, bibliotecário, escritor, ensaísta e livreiro. Traduziu para o português Thomas Mann, Elias Canetti, Lion Feuchtwanger. Verteu para o alemão textos de Erico e de Mario Quintana. Trabalhou no jornal Correio do Povo, onde manteve uma coluna de livros intitulada Balcão de Livraria. Já Vianna Moog formou-se em Direito e concursou-se como fiscal de Imposto de Consumo. Participou da Revolução de 30, foi preso em 1932 na Revolução Constitucionalista e deportado para o Amazonas por dois anos. Anistiado, passou por Belo Horizonte e Porto Alegre, onde foi convidado a dirigir a Folha da Tarde. Sem vocação para o jornalismo, aprendeu a escrever à máquina e aventurou-se na crônica humorística, publicando Novas Cartas Persas (1937). Em 1938, publicou dois livros, Heróis da Decadência e Eça de Queiroz e o Século XIX, que obtiveram reconhecimento internacional. Ambos conheceram Erico na Editora Globo, onde trabalharam como colaboradores.
Em um dos trechos das cartas a Vianna Moog, em 1958, Erico comemora o título O Arquipélago: “O poeta John Donne afirma que nenhum homem é uma ilha etc. Pois o meu herói acha que o homem é, sim, uma ilha, e nisso reside seu grande drama, sua solidão, falta de comunicação. Cada qual deseja integrar-se no Continente, na terra firme, que tanto pode ser Deus, através da ponte da igreja, como o Partido Comunista ou o Rotary Clube. Mas, falando sério, o problema é de comunicação”, refletia o autor ao descrever o derradeiro volume de sua maior obra.
Em carta de 1956, sua preocupação com o Brasil o instigava à escrita de um livro sobre o país. Em outra, de 1955, demonstrava insatisfação com o ano de eleições, quando Jucelino Kubitschek tornou-se presidente. Sua inquietação em difundir a literatura brasileira nos EUA está em uma de suas interlocuções sobre uma antologia de contos em tradução inglesa, quando reivindica um repertório que não interesse apenas à elite, visando à aproximação cultural interamericana e de classes.
O livro amplia a quantidade de informações sobre a atuação transnacional de Erico enquanto esteve na União Pan-Americana. São dados que se somam aos do livro que compila seus discursos a época, publicado online pela mesma editora Makunaima em 2020. Vale como documento sobre um dos grandes nomes da nossa cultura.