Segunda década do século 20. Nair de Teffé, 27 anos, segunda esposa do Marechal Hermes da Fonseca, surpreende os incautos conservadores da jovem República ao abrir as portas do Palácio do Catete à música popular, gênero ainda visto com reservas pela elite social e cultural brasileira. E vai além. Escandaliza o cerne empertigado do moralismo ao empunhar um violão e reproduzir o maxixe Corta-Jaca, composto pela maestrina Chiquinha Gonzaga, em uma recepção na sede do governo.
Segunda década do século 21. Marcela Tedeschi Araújo – Marcela Temer, após o casamento –, tem seu perfil publicado em uma revista semanal, sendo retratada como uma mulher “bela, recatada e do lar”. O texto, que exalta sua dedicação ao marido e ao filho único do casal, é criticado por quem viu nos adjetivos a defesa de um modelo ultrapassado de submissão ao marido.
Ambas as histórias, separadas por mais de um século, são contadas pelos jornalistas Ciça Guedes e Murilo Fiuza de Melo no livro Todas as Mulheres dos Presidentes: A História Pouco Conhecida das Primeiras-damas do Brasil Desde o Início da República (Editora Máquina de Livros, 336 páginas, R$ 44,90, em média). A dupla, que mergulhou nos 130 anos da história republicana do país, reconstruiu a política brasileira sob a ótica inédita de mulheres que, resguardadas épocas e personalidades, deixaram impressas as marcas de suas passagens pelo centro do poder.
Já nas páginas iniciais, os autores provocam o leitor ao apresentarem a obra com o provocativo título de “Mulheres Sem Rosto”, exatamente a tese a ser confrontada nas páginas seguintes.
O primeiro golpe é um convite à reflexão. Imortalizada nos traços do pintor espanhol Gustavo Hastoy, a assinatura da primeira Constituição da República do Brasil é representada com a presença de 19 pessoas ao redor de uma mesa. Retratado de frente, o primeiro presidente, Marechal Deodoro da Fonseca, está prestes a assinar a inédita Carta Magna, sendo observado por 17 homens e uma mulher – a única figura de costas.
Ela é Mariana Cecília de Sousa Meireles, esposa de Deodoro, que inaugurou o cargo de primeira-dama no país.
Exposta no Museu do Senado, ampla sala à direita do plenário da Casa, no Congresso Nacional, em Brasília, a tela antecipa o espaço que viria a ser ofertado às mulheres que ocuparam posto semelhante nos anos vindouros.
A figura sem rosto é a representação de muitas personagens femininas que, para que suas histórias fossem contadas, tiveram seus feitos esquadrinhados nas entrelinhas de discursos dos maridos ou, com sorte, em parcos documentos que a volúpia do tempo se esqueceu de apagar.
As lacunas maiores são encontradas na República Velha. Ainda assim, pode-se contar que Orsina da Fonseca, primeira esposa de Hermes da Fonseca, foi entusiasta do movimento feminista. Já Anita de Castro contrariou a família de origem nobre para se casar com o homem que viria a ser o primeiro – e único – presidente negro do Brasil, Nilo Peçanha.
O longo tempo de Getúlio Vargas no poder e o avanço nas comunicações permitiram que a história de Darcy Lima Sarmanho seja contada com mais detalhes. Uma das primeiras-damas de maior atuação, Darcy lançou as bases do que se transformaria em uma marca das esposas de presidentes: o envolvimento em causas sociais.
Da mesma forma, já na redemocratização, Sarah Luísa Gomes de Sousa Lemos – Sarah Kubitschek, após as bodas – teve importante papel na ampliação dos cuidados com a saúde da mulher. Na Nova República, destaque para Ruth Vilaça Corrêa Leite – que acabou mais conhecida como Ruth Cardoso –, intelectual que possuía currículo acadêmico maior do que o do marido, Fernando Henrique Cardoso.
O livro, que sempre trata as mulheres pelos nomes de solteiras, ainda destaca outros personagens, como esposas de presidentes que não chegaram a tomar posse – a exemplo de Risoleta Guimarães Tolentino, casada com Tancredo Neves – e o quase primeiro-cavalheiro Carlos Araújo, ex-marido de Dilma Rousseff.
Analisando a evolução histórica e social do fio republicano a partir da obra, é possível perceber questões que não encontram mais guarida na sociedade atual. Por exemplo: três primeiras-damas se casaram com 14 anos e uma com 15, enquanto seus maridos eram, em geral, uma década mais velhos. Traições eram, em sua maioria, toleradas, já que a prática era vista como algo intrínseco ao ser masculino.
Os autores também demonstram que o espaço feminino segue acanhado no tabuleiro político e que a esposa de um presidente mantém a dificuldade em dissociar sua imagem da figura e trajetória do marido.
Junto a isso, destacam que essas mulheres ainda não conseguiram se livrar da (nem sempre) tácita cobrança por padrões que a história se encarregou de enxovalhar, mas não o bastante para evitar que velhos trapos patriarcais ainda mantenham o status de elegantes trajes sociais.