Por Rafael Guimaraens
Jornalista, escritor, autor de, entre outros, "A Tragédia da Rua da Praia" e "20 Relatos Insólitos de Porto Alegre"
Uma das perguntas que ouço com frequência: qual o percentual de ficção e realidade nos seus livros? O que é fato e o que é invenção? No caso de Fim da Linha, pela quantidade de situações inusitadas e surpreendentes, essa pergunta de certo virá com mais força. Bem, as histórias que me proponho a contar são verdadeiras.
A forma de contá-las utiliza elementos de ficção – ritmo da narrativa, criação de cenas, construção de diálogos e descrição dos dilemas que embasam as ações dos personagens, trabalhados a partir de critérios de coerência, plausibilidade e verossimilhança.
Para que tudo isso funcione é preciso que o autor seja capturado pela história e assuma a disposição sincera de conhecer os fatos e os personagens em toda a sua complexidade, desviando-se das armadilhas do maniqueísmo e da simplificação.
À minha maneira, professo a fé nos preceitos da micro história formulados por Carlo Ginszburg. Diz o mestre: ao colocarmos uma lupa sobre determinado fato circunstanciado temporal ou geograficamente é possível obter um painel revelador de como se comporta a sociedade naquele período ou local. Quando este fato é um crime, acrescento eu, esses sintomas se tornam mais exacerbados.
Sob esse aspecto, Fim da Linha foi uma descoberta. Meu projeto inicial era produzir outro volume de histórias curtas, pois meu livro anterior, 20 Relatos Insólitos, fora bem-sucedido. Mostrei uma sinopse das histórias que havia selecionado à minha editora Clô Barcellos. Ela pôs os olhos no crime passional ocorrido em 1926, no interior de um bonde, em pleno centro de Porto Alegre, sobre o qual eu ainda tinha poucas informações, e disse:
– Esse é o livro! Esquece o resto.
A investigação levou-me à seguinte história, sem spoiler. Uma mulher casada é assediada por um desconhecido em plena Rua da Praia apinhada de gente. Por uma cronométrica sucessão de casualidades, a cena é testemunhada pelo marido, que aguarda atendimento na sacada de um consultório médico. Aprisionados em um teatro de olhares e despistes, impulsos e repulsas, os três personagens encaminham-se para um acerto de contas no fim da linha do bonde circular.
É uma época de hegemonia excludente dos homens. Eles dominam, decidem, agem e se estrepam com base em suas particulares noções de ética e honra – no caso do Rio Grande do Sul, o machismo tem um embasamento pretensamente científico na Cartilha Positivista, uma espécie de código de posturas que instrui a mulher a ser bela, recatada e do lar.
Nesse cenário, desponta a figura de Dallila, a bela e distraída filha do proprietário da Livraria Americana, uma espécie de meca do efervescente mundo literário porto-alegrense da época. Sobre Dallila recairá o peso do poderio masculino em suas variadas manifestações. Seu marido Eduardo, herdeiro de uma joalheria, inquieta-se com as iniciativas atrevidas da esposa e vive atormentado por cartas anônimas (fake news?) que a acusam de traí-lo.
O pivô ocasional é o carioca Carlos, um irrequieto galanteador, neto do líder federalista Gaspar Silveira Martins. Em sua jornada errante, de líder estudantil na campanha civilista de Ruy Barbosa até deputado estadual na Assembleia gaúcha, por várias oportunidades escapa da morte certa, decorrência de seu comportamento autossuficiente e provocador.
Antes do desfecho, o leitor é convidado a percorrer a jornada dos personagens até ali, através de episódios ambientados nos bastidores políticos da República Velha, na vida boêmia e cultural do Rio de Janeiro no início do século 20, na belle époque porto-alegrense e nas rudes disputas do interior gaúcho. Nesse painel figuram como personagens atuantes Ruy Barbosa, Pinheiro Machado, Borges de Medeiros e vários escritores renomados.
Na reconstrução de um fato ocorrido há 90 anos, os temas que emergem da narrativa encontram uma impressionante similitude com aspectos da atualidade, o que não escapará à observação do leitor atento. Talvez nada seja mais representativo do pensamento vigente (ontem e hoje) do que o julgamento do crime do bonde, no qual "homens de bem" – o termo é utilizado durante a sessão – deverão escolher entre a justiça e as conveniências, no caso, a defesa de suas prerrogativas masculinas.
O livro foi escrito nos últimos 18 meses, sob o impacto do Brasil de hoje. No entanto, de toda a tragédia transparece um fio de esperança no humanismo e na resistência, matérias-primas essenciais para a sobrevivência da espécie.
O livro
Fim da Linha – O Crime do Bonde
De Rafael Guimaraens.
Editora Libretos, 270 páginas, R$ 40. O lançamento será no dia 14, às 18h30min, na Praça de Autógrafos da Feira do Livro de Porto Alegre (antes, às 17h, o autor conversará com o público no Clube do Comércio, na Rua dos Andradas, 1.085).