Para os leitores de Sergio Faraco, a cena que ora descrevo é familiar. Tio Joca, um experiente contrabandista, ensina a seu sobrinho, não mais que uma criança, os segredos de seu negócio, além de lições do que é estar no mundo, do que é ser um homem, dentro da tradição fronteiriça. Depois de comprar toda sorte de produtos em Alvear, os dois cruzam de volta para o Brasil numa noite chuvosa. Há no ar, além da umidade, a ameaça da abordagem da guarda da fronteira, o que os obrigaria a se desfazer de toda a carga. É o que acontece, cabendo ao menino deitar tudo ao rio. Já rebocados pela chalana aduaneira, um oficial olha para o pequeno e lamenta que desde tão cedo ele esteja na lida ilegal, ao que o Tio Joca contrapõe, "é a vida", Tio Joca que haverá de aguentar a perda de seu sustento sem derramar uma lágrima ao final do conto.
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Este é um procedimento comum na obra do Faraco. Não são apenas as personagens que contêm suas emoções, é também o autor que abraça o trágico sem derramamentos, sem valorizações melodramáticas, uma virtude fundamental de suas narrativas, que também passa às coletâneas de poesia que organiza para a L&PM. Tal virtude não poderia ficar mais evidente do que nesta nova empreitada já nas livrarias e bancas da Feira, 60 poetas trágicos. Selecionados por suas vidas encerradas de maneira abrupta, Faraco dá a cada qual um perfil digno, comedido, sem ceder ao sentimentalismo, tal fossem suas personagens.
Como segundo eixo organizador, escolheu apenas sonetos, e, talvez por seu contato com o mundo de fala hispânica, selecionou diversos poemas em espanhol que, a meu ver, acertadamente não traduziu (ele que é um excelente tradutor). Métrica e rima são, no entanto, artifícios que a tradução tende a denunciar quando não corromper, o que fugiria ao princípio de economia do autor de Lágrimas na chuva. Tocante economia, clássica forma de humanizar a tragédia, tudo nesta leitura altamente recomendável.
60 Poetas trágicos
Sergio Faraco
L&PM, 144 páginas, R$ 29,90
Autógrafos terça-feira, às 19h, na Praça de Autógrafos