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O Brasil não tinha um Oscar para chamar de seu, mas tudo mudou neste domingo (2), quando Ainda Estou Aqui faturou o prêmio de melhor filme internacional e levou o país a festejar — pular, chorar e vibrar de emoção.
Antes da cerimônia, muito se especulava sobre os motivos que poderiam levar o longa-metragem nacional a sair vitorioso, mas, após a consagração, especialistas avaliam os pontos que, de fato, foram decisivos para o resultado.
O domínio da linguagem cinematográfica, que se sobressai mesmo com o orçamento modesto em relação aos grandes títulos de Hollywood, é o grande diferencial apontado pelo cineasta Zeca Brito, responsável por longas como Legalidade (2019) e A Vida Extra-ordinária de Tarso de Castro (2017).
— Ainda Estou Aqui dispensa o aparato tecnológico da atualidade. Busca a linguagem cinematográfica na sua essência, com um trabalho de câmera, de lente, de domínio de decupagem, de filmar da maneira mais correta possível, independentemente de efeito especial, intervenção digital. É um filme que poderia ter sido feito há 20, 30, 50 anos atrás, valendo-se do domínio do fazer cinema — afirma Brito.
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Boa campanha e conexão emocional
Esta visão romântica do cineasta sobre o fazer cinema se alia à estratégia, o negócio que fez com que o filme chegasse ao Oscar e trouxesse ao Brasil a primeira estatueta. A especialista nas obras de Walter Salles e professora de Cinema e Audiovisual da ESPM-SP Cyntia Calhado detalha:
— Ainda Estou Aqui teve a melhor campanha já realizada para um filme brasileiro, com estratégia toda da Sony Classics, que é uma empresa enorme do setor. Vimos muitas sessões sendo realizadas nos Estados Unidos, circulando em importantes festivais norte-americanos, alguns europeus. Em Veneza, ganhou o prêmio de melhor roteiro, já indicando uma repercussão internacional. Além disso, temos a marca do Walter Salles, que é a alta qualidade técnica dos seus filmes.
Segundo Cyntia, o fator atrelado ao cineasta brasileiro fez com que a obra fosse bem recebida internacionalmente. A história da ditadura militar, abordada com poucas cenas de violência, tornou o filme "mais convidativo para um espectador internacional".
A questão de o foco do título ser apenas em um núcleo restrito, a família Paiva, ainda colabora para a conexão emocional.
"Emilia Pérez" se desidratou
O presidente da Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (Accirs), Daniel Rodrigues, aponta a qualidade de Ainda Estou Aqui frente aos seus concorrentes na categoria de filme internacional.
Segundo o crítico, os títulos que disputaram a estatueta "não eram tão espetaculares quanto em outros anos", o que ajudou a colocar a obra estrelada por Fernanda Torres em uma "posição de destaque".
— Também temos o fato de que Emilia Pérez se desidratou na campanha diante da Academia. Enquanto Ainda Estou Aqui conseguiu galgar espaços, com a Fernanda Torres em destaque, as polêmicas que envolveram as falas da Karla Sofía Gascón, do próprio diretor de Emilia Pérez e a realização do filme em si fizeram uma campanha contrária. Indiretamente, acabou favorecendo Ainda Estou Aqui — avalia Rodrigues.
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Os prêmios que não vieram
O Oscar do Brasil é inédito, motivo de celebração para o país inteiro. Porém, o carisma e o talento de Fernanda Torres fizeram com que a nação desejasse que a diva vencesse o prêmio de melhor atriz — repetindo o feito do Globo de Ouro, em janeiro. A estatueta da categoria não veio, nem a de melhor filme. Os ganhadores foram, respectivamente, Mikey Madison e o seu Anora.
A disputa de melhor atriz era considerada uma das mais acirradas do Oscar, com Demi Moore, de A Substância, despontando como favorita — nem ela conseguiu conquistar a estatueta dourada.
— A Fernanda Torres falando em português (no filme) já é uma questão que deixou a disputa muito mais difícil — destaca o crítico de cinema e editor da revista digital Almanaque21 Rodrigo de Oliveira. — A gente lembra, é claro, da Fernanda Montenegro perdendo o Oscar para a Gwyneth Paltrow, mas não acho que seja a mesma coisa desta vez, porque a Madison (estrela de Anora) está ótima. Às vezes a gente ganha, às vezes perde, é do jogo.
Por que "Anora" venceu "Ainda Estou Aqui"
Oliveira avalia que a categoria de melhor filme era muito mais complicada — a indicação já era motivo para se comemorar. Porém, ele reforça a questão de Ainda Estou Aqui ser um filme falado em português e com um orçamento muito menor do que os outros indicados. Mesmo assim, acredita que a obra conseguiu muitos pontos positivos na reta final da campanha, após chegar aos cinemas norte-americanos, em 17 de janeiro.
Cyntia Calhado avalia que Anora se tornou o "filme de consenso" deste Oscar e, com isso, venceu Ainda Estou Aqui nas categorias de melhor filme e melhor atriz. Segundo ela, a campanha de Anora foi embasada na ideia de um cinema independente norte-americano, mostrando uma "outra maneira" de fazer este tipo de arte, com menor orçamento.
— O diretor e roteirista, Sean Baker, tem essa característica de falar sobre o lado B americano, uma espécie de desconstrução da ideia do American way of life ("modo de vida norte-americano"). Tem aí uma cola simbólica grande com os votantes norte-americanos. E eu atribuo a vitória da Mikey Madison a essa geração de consenso que Anora teve — detalha a professora.
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Fernanda Torres furou a bolha
Apesar de o Brasil não ter faturado estes dois prêmios, Zeca Brito acredita que o país foi "totalmente vitorioso" e que Fernanda Torres teve o seu talento reconhecido pelo mundo, independentemente do resultado.
— Diferentemente dos demais festivais de cinema, que têm como critério a questão artística, o Oscar é uma premiação da engrenagem industrial norte-americana. Os troféus de atuação servem como plataforma de projeção dos próximos filmes. É uma ilusão acreditar que o que foi avaliado foi o mérito artístico das atrizes. É uma engrenagem que envolve agentes e campanhas publicitárias — observa Brito. — E nós fomos vitoriosos, sim, com a indicação da Fernanda. É uma indicação que fura uma bolha, comprova que a força da arte, que a força do conhecimento das atrizes brasileiras é maior do que a própria indústria.