Já foi uma vitória. Não faltaram comemorações pelo feito. No dia 9 de fevereiro de 1999, Central do Brasil recebeu duas indicações ao Oscar: melhor filme estrangeiro e melhor atriz, pelo trabalho impecável de Fernanda Montenegro.
Quase 26 anos depois, Ainda Estou Aqui garantiu sua vaga no Oscar nesta quinta-feira (23) e superou o número de indicações de Central do Brasil — além de melhor filme internacional (que trocou a nomenclatura em 2020) e melhor atriz pela atuação de Fernanda Torres, justamente a filha de Fernanda Montenegro, o longa disputa o título de melhor filme. Agregando mais uma reincidência, Walter Salles dirigiu ambas as produções.
Resta saber se Ainda Estou Aqui terá melhor sorte. Quando saiu o anúncio de que Central do Brasil participaria do Oscar, já havia o consenso do favoritismo do italiano A Vida É Bela na categoria de filme estrangeiro — cenário que é similar nesta vez, com os prognósticos favoráveis a Emilia Pérez, que tem produção francesa e história que se passa no México.
Ao todo, A Vida É Bela recebeu sete indicações ao Oscar. O longa escrito, dirigido e protagonizado por Roberto Benigni buscava também uma façanha inédita até então: ser a primeira produção em língua não inglesa a garantir o prêmio de melhor filme da cerimônia. Não conseguiu. Aliás, esse tabu só foi quebrado em 2020, com o sul-coreano Parasita.
O então crítico de Zero Hora, Tuio Becker, destacou à época que a batalha de A Vida É Bela era “contra os filmes de língua inglesa” e que era “quase certo que ele perderia o Oscar principal”. Contudo, Becker acrescentou que o longa italiano seria "lembrado pelos membros da Academia, o que pode tirar o Brasil da competição, deixando com Fernanda Montenegro a grande esperança”.
Porém, a situação na categoria de melhor atriz também era complicada. Era o que sentia Fernanda quando acompanhou o anúncio da indicação em um quarto de hotel. A reportagem publicada em Zero Hora descreve que ela ficou impávida por alguns segundos, depois comentou, com calma e com um quê de ironia não planejada:
— Estou ali entre essas criaturas divinas, maravilhosas, loiras…
Fernanda concorreu com Cate Blanchett, por Elizabeth; Gwyneth Paltrow, por Shakespeare Apaixonado; Meryl Streep, por Um Amor Verdadeiro; e Emily Watson, por Hilary e Jackie.
Mas já era um feito e tanto: ela foi a primeira atriz latino-americana a concorrer na categoria. Até então, a única atriz a ganhar o prêmio por um filme falado em língua não inglesa foi Sophia Loren por Duas Mulheres, do italiano Vittorio De Sica, em 1961.
— E naquele momento havia um interesse do marido dela, Carlo Ponti, e do Dino de Laurentis (produtores de cinema italianos) em investir no mercado americano. Isso não diminui em nada o trabalho dela, não estou falando de qualidade. Mas é assim que funciona a indústria — completou Fernanda.
Aliás, somente a francesa Marion Cotillard venceu na categoria posteriormente, em 2008, por seu trabalho em Piaf — Um Hino ao Amor. Naquele período, Fernanda demonstrava serenidade com a indicação e poucas esperanças. Porém, Central do Brasil chegou ao Oscar com uma bagagem recheada de troféus.
Na temporada de premiações, Central do Brasil venceu o Globo de Ouro e o Bafta nas categorias dedicadas à produções estrangeiras, além de ter vencido o Urso de Ouro — prêmio principal — do Festival de Berlim. Aliás, Fernanda Montenegro ganhou o Urso de Prata de melhor atriz.
Mas tanto Fernanda quanto Salles ressaltavam que havia um labirinto entre serem indicados ao Oscar e pôr as mãos na estatueta. O diretor preferia celebrar o contexto das recentes indicações de O Quatrilho, em 1996, e O Que É Isso, Companheiro?, em 1998:
— Três indicações em quatro anos já é prova de que existe uma cinematografia brasileira. Não sou eu quem está dizendo. É estatística — explicou o cineasta.
Clima de Copa do Mundo
Em diversas cidades brasileiras, as pessoas se reuniram em bares, restaurantes e até cinemas para torcer pela possibilidade do Brasil conquistar o seu primeiro Oscar, no dia 21 de março de 1999. Era um clima de final de Copa do Mundo.
Isso se estendeu a Porto Alegre. Conforme reportagem de Zero Hora, casas noturnas da Capital aproveitaram a oportunidade e “capricharam na decoração temática e nas atrações”. “Telões, balões dourados, cicerone travestida de Marilyn Monroe, bolsas de apostas valendo drinques e jantares grátis, tapete vermelho, miniaturas de Oscar e até uma reprodução viva da estatueta recepcionaram os torcedores do cinema nacional”, diz o relato. Para o público, havia a sensação ilusória de que o pensamento coletivo faria dar certo.
A reportagem descreveu: “Durante os poucos segundos em que foram exibidas as cenas de Central do Brasil, aplausos tomaram o ambiente do Birra & Pasta. A animação e o nervosismo duraram até Roberto Benigni ser chamado para receber a estatueta por A Vida É Bela. Muitos calaram-se. Outros deixaram escapar um ‘ahhh’, decepcionados. Muitos acharam justa a vitória do filme italiano”.
Porém, a frustração surgiu quando Fernanda Montenegro não venceu a estatueta. A publicação aponta que a queixa unânime era de que Central do Brasil merecia ao menos um prêmio.
Ainda, diferentes pontos do país realizaram exibições gratuitas de Central do Brasil naquele domingo de Oscar. No Rio, por exemplo, a estação de trens que dá nome à obra reuniu cerca de mil espectadores.
Em Porto Alegre, centenas de pessoas compareceram à noite ao Largo Zumbi dos Palmares (então Largo da Epatur) para assistir ao longa. “O silêncio da sala improvisada a céu aberto só era quebrado pelo barulho dos carros que passavam pela Avenida Loureiro da Silva. A plateia, calada, deliciava-se com o filme. O telão ondulando ao sabor do vento exigiu dos espectadores um pouco de paciência”, relata reportagem de Zero Hora.
E o Oscar não vai para o Brasil
Apesar de toda a torcida, não deu para Central do Brasil. Na categoria de melhor filme estrangeiro, A Vida é Bela confirmou as previsões. O longa italiano ainda faturaria, naquela noite, as estatuetas nas categorias de melhor montagem, melhor trilha sonora e melhor ator para Benigni.
Já em melhor atriz, deu Gwyneth Paltrow, por Shakespeare Apaixonado. Aliás, o longa venceu sete categorias, incluindo melhor filme. Porém, houve controvérsia. Críticas acreditavam que o prêmio principal deveria ter ido para O Resgate do Soldado Ryan, que o Oscar estava focando em adaptações e negligenciando os roteiros originais.
Outro debate que a premiação acendeu foi sobre o lobby nas grandes premiações de cinema. A campanha da Miramax (produtora responsável por Shakespeare Apaixonado e A Vida é Bela) para o Oscar de 1999 custou US$ 15 milhões, conforme reportagem da Folha de S.Paulo.
Steven Spielberg, diretor de O Resgate do Soldado Ryan, declarou na ocasião:
— Eu acredito que devo seguir a estrada correta quando se trata de competição. Tenho de acordar de manhã com respeito próprio.
Em entrevista concedida à GloboNews, em 2018, Fernanda pontuou que o prêmio é “uma coisa extremamente americana, com repercussão no mundo” e que “lá, ninguém tem problema de fazer lobby”. A atriz avaliou que era impossível vencer o prêmio.
— Imagina, Meryl Streep perdeu. A (Cate) Blanchett no auge, nossa senhora! Fez duas Elizabeths extraordinárias. Como eu ia pensar em ganhar alguma coisa? Fiquei lá, foi interessante, importante. Não é que não seja importante, não estou jogando fora e nem menosprezando, pelo amor de Deus. É uma experiência humana e, dentro da nossa área, espantosamente interessante de ver — salientou.
Aclamação no aeroporto
Fernanda retornou ao Brasil no dia 23 de março, dois dias depois da cerimônia. Segundo relato da Agência Folha, ela foi aplaudida ao sair do setor de desembarque do Aeroporto Antônio Carlos Jobim.
Depois da recepção calorosa, a atriz concedeu uma entrevista coletiva, em que comentou a cerimônia do Oscar e o quanto a premiação depende de marketing:
— Foi interessante assistir aos bastidores de toda a luta pelo Oscar. Este é um prêmio da indústria, e Gwyneth tem as maiores possibilidades no mercado. É uma atriz norte-americana com um rosto lindo, o melhor rosto de boa moça atualmente, e, como eu já disse antes, é loura. Nunca tive o sonho de ganhar. Sei que é o prêmio maior da indústria norte-americana. Fizemos o máximo que nossa condição econômica permitia.
Quem também desembarcou naquele dia no mesmo aeroporto foi o ator Vinícius de Oliveira, então com 12 anos. Ele interpretou Josué em Central do Brasil. Para ele, houve desrespeito na cerimônia:
— Primeiro, eles mostraram um trailer de A Vida É Bela. Depois, aquela italiana (Sophia Loren) ficou falando o tempo todo do Benigni. Eu estava lá atrás, com o Waltinho. Vi logo que a gente tinha perdido. Achei falta de respeito e fiquei chateado.
Ele completou:
— Antes da entrega, fiquei muito nervoso. Depois, fiquei muito triste. Mas não sei o que a Miramax arrumou.
Vinícius classificou a festa do Oscar como “uma coisa muito chata”, em que viu poucas estrelas de perto. Porém, houve uma interação especial, embora tenha sido atrapalhada pela barreira da língua:
— A que vi mais de perto foi a Meryl Streep, que veio falar comigo. Mas não entendi nada do que ela disse. Acho que me elogiou.
Central do Brasil está disponível no catálogo das plataformas da Netflix e do Globoplay.