Em seu primeiro longa-metragem como diretores, os atores belgas Jérémie e Yannick Renier se inspiraram na própria experiência como irmãos. Em Carnívoras, eles contam a história de rivalidade entre duas irmãs atrizes. Enquanto trabalhava no roteiro do longa-metragem, Jérémie recebeu o convite do conceituado diretor François Ozon para mergulhar ainda mais no universo das relações familiares, interpretando dois gêmeos no longa O Amante Duplo. Nos dois filmes, que estão em cartaz hoje em Porto Alegre pelo Festival Varilux, os conflitos fraternos são levados às últimas consequências.
Um dos destaques do festival, o suspense erótico O Amante Duplo é contado a partir da perspectiva de Chloé, vivida pela deslumbrante Marine Vacth. Ela é uma jovem que se envolve com o seu psicoterapeuta, Paul. Logo descobre que ele escondia um irmão gêmeo, Louis, e passa a ter um caso com ele. Ao longo do filme, inspirado no livro The Lives of Twins, de Joyce Carol Oates, Ozon coloca cenas que funcionam como comentários estéticos para as questões colocadas na trama, como uma câmera que mostra o interior da vagina de Chloé, antes que o espectador a veja revelar sua vida na terapia, e imagens de espelhos que reforçam a ideia do “duplo”.
Jérémie Renier encara a complexa tarefa de interpretar os gêmeos, que têm personalidades opostas, inclusive na maneira radicalmente diferente com que fazem sexo com Chloé. No Rio de Janeiro para divulgar o filme, Jérémie falou ao público ao final de uma sessão na sexta-feira que, apesar de esse ter sido seu terceiro filme com Ozon, teve de provar que poderia interpretar o pacato Paul e o agressivo Louis.
– Fiz testes para o papel. O François não estava convencido de que eu poderia interpretar o gêmeo mau. Mas eventualmente viu a perversidade em mim – brincou o ator.
Quando foi finalmente chamado por Ozon, Jérémie estava se preparando para dirigir seu primeiro filme, Carnívoras, outro suspense psicológico no qual a rivalidade fraterna está em primeiro plano. O filme espelha sua relação com Yannick, com quem divide a direção e o roteiro, mas escala duas mulheres como protagonistas.
Como em O Amante Duplo, as personagens de Carnívoras têm a mesma profissão, mas vidas e personalidades opostas: a primogênita Sam é espontânea e sensual, a caçula Mona (Leïla Bekhti) é disciplinada e tímida; Sam é casada, tem um filho e é famosa, Mona é solteira e desempregada. Quando fica sem dinheiro, a irmã mais velha se muda para a casa da mais nova, que, um dia, se cansa das responsabilidades e decide sumir deixando o caminho livre para Mona tentar substituí-la.
Ganhadora do César de atriz revelação em 2016 (por Fatima, de Philippe Faucon), Zita Hanrot descreve sua personagem, Sam, como sensual e selvagem:
– Ela está sofrendo. Tem muitas responsabilidades sobre os seus ombros e quer ser livre, viver à sua maneira, mas não sabe como. Sam não escolheu esse trabalho, ao contrário de Mona, que fez faculdade. Sam teve sorte e Mona fez tudo certinho, mas não aconteceu para ela. No fundo, é uma história de amor. Elas tentam amar uma a outra, mas o contexto, o olhar das outras pessoas envenena a relação.
Para Jérémie, o processo de escrever e filmar Carnívoras foi como uma longa terapia:
– Foi uma maneira de fazer coisas que não foram ditas surgirem sobre a nossa relação, ainda mais porque as personagens tinham a mesma profissão (atrizes), isso nos permitiu uma catarse.
“Ozon gosta de causar mal-estar no público”
O Amante Duplo tem cenas fortes, como a câmera que revela o interior da vagina de uma mulher. Como é para você, como ator, fazer cenas assim?
Acho que o Ozon tinha vontade de contar a história mental de uma mulher, da sua sexualidade, do que ela mantém dentro dela e não mostra. De certa maneira, mostrar Chloé desnuda. O Ozon gosta de causar certo mal-estar no público, de ser provocativo. Com relação às cenas mais íntimas com a Marine, são cenas que podem nos deixar tímidos, mas o fato de fazê-las com Ozon me dá a confiança de saber que vamos ser bem filmados, de que não será algo grosseiro, mal feito. São cenas escritas dessa forma e era primordial fazê-las para contar a história.
Quais as maiores semelhanças entre os filmes O Amante Duplo e Carnívoras?
São muitas, a começar pelas duas irmãs e os dois irmãos. Tem o lado psicológico, de entrar no mental de uma personagem. Começamos a escrever Carnívoras há sete anos, e o Ozon fez esse roteiro há dois anos, mas nunca havíamos falado sobre isso. Foi a vida que colocou esses dois projetos juntos, por acaso.
Como você construiu esses dois personagens gêmeos, mas que têm personalidades tão diferentes?
Comecei com ensaios e rapidamente percebemos que era preciso ter diferenças físicas, mas sutis. Por exemplo, um não poderia ser manco, para que, num certo momento, o espectador pudesse se perguntar se realmente eram dois ou um, fazer diversas leituras. O Louis não poderia ser uma caricatura e o Paul não poderia ser sem personalidade, era preciso deixá-lo mais complexo para não ficar chato.
Carnívoras começa como drama e se transforma em um thriller. Como é esse caminho de um gênero ao outro?
Na medida em que escrevemos o roteiro percebemos que queríamos imaginar essa nossa relação como algo que tivesse dado muito errado, fantasiar em cima desse assunto. A ideia de fazer um thriller veio rapidamente, para criar tensões.
“Universal, profundo e obscuro”
Em que medida Carnívoras é inspirado na sua relação com Jérémie?
No começo, é muito inspirado em nós. Depois, tentamos transformar a história em algo mais universal, profundo e obscuro. Nós dois somos atores e irmãos. Tentamos explorar a questão do sucesso e da injustiça dentro da família.
Jérémie está mais próximo de Sam, é o irmão mais novo e mais famoso, e você de Mona?
Sim, é a nossa realidade. Mas a Mona não é feliz no seu trabalho. Eu sou menos famoso, mas faço teatro, ganho minha vida, tenho dinheiro o suficiente para ter um apartamento e dois filhos. Amo minha vida. Consigo rejeitar os olhares que dizem que a vida do meu irmão é melhor porque ele é mais famoso. A minha vida é minha. Ele também passa por dificuldades e é mais fácil ver isso porque estamos sempre juntos.
Por que optaram por duas personagens mulheres?
Isso liberou a nossa imaginação porque estava tudo muito próximo da nossa realidade.
Como é trabalhar com o irmão?
Tem algo entre nós que não conseguiríamos recriar. Escrevemos o roteiro juntos e depois foi natural dirigirmos juntos. Às vezes, Jérémie estava na minha cabeça e às vezes eu estava na dele. Era como um diálogo sem palavras.
E qual foi a parte mais difícil?
O mais difícil para mim é que levou mais de seis anos e passei todo esse tempo diante de uma história que tem coisas profundas minhas que eu não quero ver, sentimentos que tenho pelo meu irmão. Como quando eu era pequeno, e senti que quando ele nasceu ele tomaria o meu lugar. Eu estava feliz e com medo ao mesmo tempo. Ainda hoje é um relacionamento e portanto precisa de gerenciamento para ser saudável. Tem um laço entre nós que é difícil, na mesma hora pode amar e odiar o outro.
Ao longo desses seis anos, o projeto mudou muito?
Sim, levou muito tempo para chegarmos a algo muito profundo e obscuro.
Noite de sábado no friozinho do cinema
As baixas temperaturas do último sábado não assustaram a plateia que se dispôs a conferir uma sessão de cinema ao ar livre em Porto Alegre. Munidos de cobertores, tocas de lã, bebidas quentes e pipoca, os corajosos espectadores assistiram ao filme Million Dollar – Arremesso de Ouro no estacionamento do Barra Shopping Sul, na terceira edição do projeto Re.movies. O evento era aberto para adultos, crianças e até pets – alguns cachorrinhos eram vistos passeando entre as cadeiras durante a sessão. O projeto Re.movies tem como propósito dar foco a uma causa muito especial por trás da tela do cinema. A cada edição, crianças em situação de vulnerabilidade social recebem atendimento oftalmológico para identificar e solucionar possíveis problemas de visão. O projeto já disponibilizou consultas oftalmológicas às crianças do Centro Comunitário Orfanotrófio I, de Porto Alegre. A entidade atua junto às famílias da comunidade para prestar atendimento a crianças e adolescentes.