Por Mônica Zielinsky
Professora no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFRGS
É inegável o despontar, hoje, de novas experiências de historicidade na cultura contemporânea, valiosamente referidas no pensamento de Eduardo Viveiros de Castro e Déborah Danowski. Em Um Mundo por Vir?, surgem suas referências “à instabilidade que afeta o tempo, as quantidades, as qualidades, as próprias medidas e escalas em geral e que corrói também o espaço” (2017, p. 29).
A partir de suas análises sobre a aceleração desmedida do tempo e a compressão correlativa do espaço como uma característica contemporânea, condições existenciais e psicoculturais causadas pelas imensas transformações do planeta sob a égide das pandemias globais, de guerras genocidas e de incontrolável violência, também das intensas mutações ecológicas que nos assolam em um colapso iminente, é impossível não nos perguntarmos sobre os novos sentidos da memória, um fundamento que eclode a partir da bela e vivamente inventiva exposição Laboratório Central: Pintura e Memórias da Cidade, com curadoria do Coletivo Studio P.
Indaga-se, portanto: como é expressa a memória através da arte? De que modo ela traz o passado, a produção remota de outrora, hoje?
Por outro lado, pergunta-se como se dá a transmissão das manifestações da memória cultural? A rememoração poderia ser ela própria falsa? Deformada? Ou, quem sabe, inventada ou artificialmente implantada em um mundo que definitivamente não é mais o mesmo?
Ou poderia existir, quem sabe, uma reconstrução atual da memória à luz de um presente que se reconstrói agilmente e que mesmo se reinventa sob o prisma de sua atualidade?
Jan Assmann, Pierre Nora, Harriet Flower, Andreas Huyssen, Giselle Beiguelman, entre muitos outros estudiosos, trazem essas indagações, ao recriarem o passado a partir dos fragmentos de sua evidência – ou mesmo, como lembra a pesquisadora norte-americana Harriet Flower, ao sublinhar que “um passado que seja completamente desconectado das experiências do presente e das suas circunstâncias jamais evocará o memorável” (em The Art of Forgetting, 2006, p.2).
Nesse sentido, sabe-se que a memória tem tradicionalmente configurações próprias, espaços que lhe são inerentes e um peculiar significado cultural – em sua abordagem, permeiam interrogações “sobre o que tratam?”, “como e por que se inserem ou não em determinados contextos”? ou “a quais políticas culturais respondem?”.
Sem esses contornos, ela se tornará inegavelmente apagada e excluída da vida cultural.
As conformações históricas do mundo contemporâneo tendem a colocar em xeque a mera acumulação de dados de um passado. Ao contrário, indagam, com certa profundidade, sobre a materialidade da memória presente, seus lugares, a experiência sensível que dela se projeta em modos de ser performáticos.
Na exposição, delineiam-se todas essas questões. Elas indicam materialidades diversas da memória transformadas em pintura. Fazem reviver as do passado, mas oferecendo novos modos de compreensão: ora expõem-se em obras construídas coletivamente sob diversos ângulos de sua apreensão em um mesmo suporte ou em experiências mutantes de projeções espaciais em maquetes, assim como em fragmentos de destruição de avenidas ou em obras que evocam essa destruição atual a partir do passado. Também trazem, a um instigante modo anacrônico, autorretratos atuais que transitam em pintura nos espaços urbanos de outrora.
Desenhos originais da fonte Talavera de la Reina, homenagem do povo espanhol para Porto Alegre desenhada por Fernando Corona, tornam-se fundamentais no lugar da exposição. Inquirem o processo de concepção e criação em preciosa pesquisa arquitetônica no passado, mas, mais do que tudo, contrastam com o espaço atual da cidade em meio à instabilidade da vida urbana, referência indispensável ao lugar da exposição.
O sentido mais vigoroso dessas oscilações da memória entre arquivos e obras, concepção original de desenhos projetivos e sua permanência efetiva no Centro Histórico da cidade, trazem, enquanto memória cultural, o seu sentido mais político, pois pertencem à polis, em sua vocação política de comunidade. Exigem, mesmo abaladas nos instáveis desenhos do mundo contemporâneo, esta sua performance, a que contribui à construção de sua identidade e à de apropriação de seu passado, este muitas vezes escamoteado em meio a profundos esquecimentos culturais e a um desastroso desconhecimento coletivo.
Na mostra, ergue-se uma operação mnemônica, de reconciliação, entre tempos, lugares e trabalhos, por retomadas instigantes de imaginários pouco conhecidos de lembranças, revivências e atualidade. São os que se originam de uma performance reconstrutiva da memória, plasmada em meio à arte, entre camadas de tinta e em lugares pluridimensionais. Envolvem a materialidade pictórica e de lugar, suas fontes, a corporalidade de seus autores e de suas ações.
A exposição é, enfim, o lócus desta rica memória de uma imaginação reconstrutiva, um lugar estratégico de consciência política. Oferece-se como um ponto luminoso circunscrito nos princípios quase apocalípticos do mundo hodierno (ou de hoje) apontados nas importantes, porém dramáticas interrogações de Viveiros de Castro e Déborah Danowski.
Laboratório Central: Pintura e Memórias da Cidade
A exposição fica em cartaz até o dia 5 de janeiro na Pinacoteca Aldo Locatelli, no Paço Municipal de Porto Alegre (Pça. Montevidéu, 10). Visitação de segundas a sextas-feiras, das 9h as 17h.