Por Paula Ramos
Crítica e historiadora da arte, professora do Instituto de Artes da UFRGS
Talvez a lembrança mais marcante de Nara Amelia (Três Passos/RS, 1982) seja a do entardecer na casa da avó materna, no interior da Colônia Brasil, município de Três Passos. A imagem do pôr do sol avermelhando o horizonte e tornando a paisagem rural repentinamente opaca e misteriosa persevera: “A casa era de madeira, bem velha, no meio de um monte de árvores. E lá tinha tudo que é bicho: boi, vaca, cavalo, galinha, porco... E aí, de repente, aquele breu, totalmente escuro, e a gente tinha que ir pra dentro de casa. A gente e todos os bichos, que se recolhiam para a estrebaria”. Em meio à noite, o ruído das lebres correndo, a miadela das gatas no cio, o canto das corujas: na cabeça da menina, a fantasia insone. Casa, avó, ambiente idílico: nada permanece; no lugar, uma árida plantação de soja. As evocações dessa vivência, todavia, a perseguem.
É de memória e invenção a fatura poética de Nara Amelia, cuja fascinante obra pode ser apreciada até 29 de abril na exposição Os poentes e as auroras, na Galeria Ocre. Memória e invenção, é bom dizer, em sentido largo.
Há, nos delicados desenhos, bordados, gravuras e montagens da artista, múltiplas camadas de tempo e referência. A mais evidente se manifesta nos materiais, pinçados de uma pródiga gaveta de guardados: papéis de várias gramaturas e origens, muitos dos quais anotados e rasurados, outros tantos suprimidos de velhos livros, com suas cirúrgicas passagens de texto, bordas amareladas, sinais de uso e oxidação; flores secas, santinhos populares, impressos efêmeros; fragmentos de lã ovina, linhas douradas, lenços e panos arrematados com crochê, devidamente maculados. Há, também, a memória dos processos e o que eles evocam: as formas artesanais e domésticas da costura e do bordado, tão associadas ao universo feminino; a douração airosa de pormenores e palavras, reportando às sentenças sagradas nas iluminuras medievais; as marcas de impressão, no papel, a sussurrar a natureza da imagem gravada, de uma imagem que desponta a partir do íntimo contato de uma matriz com um suporte, de uma matriz que deixa a “sua marca”, a marca do afastamento. Há, por fim, uma espécie de memória universal: a menção aos livros, nos vários diálogos que a artista estabelece com esse objeto e sua tradição. Pensemos nas ilustrações, para as quais a gravura em metal foi, durante séculos, o principal meio de reprodução técnica; na atmosfera de fábula e no caráter moralizante, patente na contiguidade entre humanos, híbridos e animais; na estrutura alegórica, fortalecida pela relação entre imagens e legendas, que nos convida a procurar, no mistério da montagem, significações e narrativas.
Segundo Walter Benjamin, na construção alegórica, as coisas olham para nós sob a forma de fragmentos, e é assim que as esfíngicas obras de Nara Amelia nos encaram e por vezes nos devoram. Nelas residem fabulações para vínculos patéticos, perversos e narcísicos entre as pessoas, que a artista observa com argúcia ou mesmo vivencia, representando-os, por meio de metáforas, com certa piedade, ironia ou tragicidade. Nelas estão, devassadas ou submersas, alusões a artistas como Dürer e Rembrandt, Goya e Doré; mas também a escritores como Guimarães Rosa, Kafka e Borges, sem esquecer dos livros bíblicos de Jó e de Eclesiastes. Todos eles, quer pela forma, quer pela mensagem, operam na fissura, entregando aos que estão atentos ora o maravilhamento, ora o necessário desconforto da consciência crítica. É nesse caudal que Nara Amelia está mergulhada e é dele que extrai suas reminiscências e ficções, articulando-as com rigor e contumácia, mas mantendo as lacunas que asseguram o feitio de sonho e enigma, sobretudo quando a pauta orbita em torno da própria existência e da melancolia diante de seu sentido.
A paisagem crepuscular da Colônia Brasil, citada na abertura deste texto, ecoa no bordado Os poentes e as auroras, imagem bifronte com duas cabeças de macaco, uma serena, outra furiosa, que intitula a exposição, bem como na montagem O urubu é que faz castelos no ar, talvez a mais ambiciosa obra já produzida pela artista. Constituída pela sobreposição e o encadeamento de mais de 60 gravuras oriundas de uma mesma matriz e impressas em papel japonês Washi, translúcido, ela reitera, obsessivamente, a figura soturna e vigilante de um urubu. A ele, por um viés cultural, associamos a morte, mas lembremos que essa mesma morte alimenta a vida.
Os Poentes e as Auroras
Desenhos, gravuras e bordados de Nara Amelia produzidos entre 2012 e 2023. Visitação até o dia 29, de segunda a sexta-feira, das 10h às 18h, e sábado, das 10h às 13h30min. Na Galeria Ocre (Rua Demétrio Ribeiro, 535, Centro Histórico), em Porto Alegre. Haverá uma conversa com a artista na quinta-feira, dia 27, às 18h. Saiba mais em ocregaleria.com.br.