
A noite em que Ray Charles tocou e cantou de graça em um barzinho da Cidade Baixa, em Porto Alegre, é quase uma lenda urbana. Daquelas que transitam pela bruma que separa a realidade da imaginação das pessoas. Só que a história é totalmente verídica! Vamos contá-la, pela primeira vez em detalhes, graças ao depoimento do engenheiro Raul Carlos Py de Hires, que estava presente de corpo e alma quando o gênio do jazz e do blues se apresentou, de surpresa, para uma plateia de boêmios boquiabertos.
– Aquilo não foi uma canja. Foi um jantar completo! – brinca Raul, hoje com 73 anos.
Como costuma acontecer com as histórias que se perpetuam através de testemunhos orais, o show de improviso de Ray Charles é contado em diferentes versões. Uma delas é a de que o artista estava sem sono e queria tocar piano. “Como não havia piano no hotel, pediu que o levassem a algum lugar onde pudesse tocar e cantar. (...) Naquele tempo, não havia telefone celular e, portanto, ninguém conseguiu chamar os amigos ou tirar fotos”, escreveu Leo Iolovitch em Aconteceu na Cidade Baixa, crônica do livro Descendo da Nuvem.

Há quem diga que o mágico episódio teria acontecido depois que Ray Charles se apresentou em um festival patrocinado por uma marca de cigarros, em meados dos anos 1990. Verdade seja dita: foi após uma apresentação única no Gigantinho e o lendário pianista estava acompanhado de 21 músicos que formavam a sua banda. E mais: a data correta é 22 de novembro de 1978. Raul tem certeza disso graças a uma lembrança indireta – 1978 foi o ano em que fez um curso de especialização sobre pontes e viadutos na UFRGS. Na época, os alunos apelidaram o professor francês da disciplina de Mecânica de Solos de Platini, nome do craque que havia disputado a Copa do Mundo da Argentina, alguns meses antes.

– Ficou registrado em minha memória que, na sala de aula, Platini comentou que também tinha ido ao show no Gigantinho – diz.
Sim, Raul foi ao show no Gigantinho, acompanhado de um amigo, o advogado Jarbas Castelo Branco (que morreu em 2021). Encerrado o espetáculo, como faziam quase todas as noites, ambos se dirigiram ao Big Som, barzinho no andar térreo do edifício localizado na esquina da Rua Joaquim Nabuco com a José do Patrocínio.
– Gostávamos de ir lá. Era um bar com música, dança e muita paquera.
O dono do bar – o baterista Marco Antônio – havia passado uma temporada nos Estados Unidos, onde conhecera os músicos que tocavam com Ray Charles. Por essa razão, Raul acredita que a visita ao Big Som tenha sido combinada. Seja como for, por volta da meia-noite, sem aviso prévio, o astro norte-americano adentrou o recinto com a sua trupe, incluindo as garotas que faziam backing vocal. Marco Antônio baixou a cortina de ferro e avisou:
– Quem está dentro fica. Quem está fora não entra mais!
E assim, por aproximadamente duas horas, Brother Ray (como preferia ser chamado entre amigos ou colegas músicos) se esbaldou diante do piano, enfileirando clássicos como A Song For You e Georgia On My Mind. Durante todo o tempo, Raul e Jarbas ficaram sentados a cerca de um metro e meio do ídolo.
– Imagina a emoção que sentimos. Foi inesquecível – conta Raul.
Ray Charles (falecido em 2004, aos 73 anos) voltaria à Capital outras vezes, mas nunca mais se apresentaria de graça na cidade, pelo puro prazer de tocar e cantar, como fez naquela madrugada memorável no Big Som.