Tão características do litoral gaúcho como o mar chocolatão, as intensas rajadas de vento que carregam areia para todos os cantos e arrancam até mesmo os guarda-sóis mais bem instalados são temidas pelos veranistas do Rio Grande do Sul. Para muitos, sua indesejada presença é capaz de estragar um dia de praia. Mas há parcela de frequentadores que comemora sua chegada e considera o típico Nordestão um grande amigo: são os praticantes de esportes como kitesurf e windsurf, que dependem do vento forte para colocar suas pipas, velas e pranchas em ação.
— Quando os veranistas começam a sair da praia (por causa do vento), é a nossa hora — resume Sidinei Guimarães de Freitas, 51 anos, praticante e instrutor de kitesurf.
O kitesurf é um esporte aquático, que envolve uma pipa (semelhante àquela utilizada no parapente), uma prancha e um trapézio (uma espécie de cinturão onde a pipa é conectada). Natural de Imbé, no Litoral Norte, Sidi explica que há mais de uma modalidade: freestyle, que abrange saltos e manobras no ar, com uma prancha com alças para os pés, e kitewave, em que o praticante faz manobras sobre as ondas com uma prancha de surfe — essa última é a preferida do instrutor. Em sua visão, o litoral do RS oferece uma das melhores condições para a prática do esporte.
No final da tarde de 23 de janeiro, quando a reportagem de GZH foi até o município vizinho de Tramandaí, havia diversos praticantes do esporte na água e nenhum veranista na beira da praia. O vento de quadrante leste soprava muito forte, emitindo um som alto e arremessando areia para a Avenida Beira Mar — vários atletas destacaram, contudo, que as rajadas ainda eram consideradas fracas se comparadas àquelas registradas quando há Nordestão.
Sidi pratica kitesurf há 12 anos e dá aulas há quase uma década, mas começou nesse meio com o surfe, ainda na infância. O gaúcho comenta que o segundo esporte é um pouco prejudicado aqui no RS, porque o vento “bagunça” o mar, atrapalhando a formação das ondas.
— Quando tinha o vento nordeste, eu já nem vinha na praia, porque sabia que não ia ter onda. E aí, uma vez, passando aqui, eu vi uma pipa de kitesurf. Fiquei em um quiosque, olhando aquele lance e imaginando como seria. Achei fácil e resolvi comprar o equipamento em 2012, e sem instrutor nenhum, comecei a tentar aprender — lembra.
Foram seis meses cometendo diferentes erros e sofrendo alguns acidentes que, por sorte, não resultaram em nenhum ferimento grave. Mas Sidi insistiu no esporte e se apaixonou antes mesmo de conseguir praticá-lo corretamente.
— Quando aprendi, queria alguém para ser meu parceiro, porque é um esporte para praticar em grupo, um cuida do outro, um ajuda o outro. Aí, parti para o plano de ensinar amigos meus para ter companhia. Hoje, o nosso grupo tem mais de 200 pessoas do Litoral Norte e da Região Metropolitana — conta o instrutor, que também atua como funcionário público de Imbé há 27 anos.
O número de praticantes reunidos na praia aumenta quando Sidi está no local. Sua presença é anunciada pelo ônibus preto que dirige. Com uma arte colorida do mar e batizado de “kitebus”, o veículo pertencia ao pai do instrutor, que faleceu em 2016, e foi adaptado para carregar todos os equipamentos do esporte que seus amigos e alunos possam precisar. Para Sidi, essa é uma forma de manter o pai presente em sua vida.
As melhores condições
Conforme o instrutor, o esporte é praticado durante todo o ano, mas a melhor época é a primavera, porque o vento de quadrante nordeste é bem frequente. Contudo, ele garante que os praticantes não sentem as rajadas fortes enquanto estão velejando, porque se movimentam na mesma velocidade.
Vamos em busca de manobrar e saltar. É como um brinquedo, só que de gente grande, e nos divertimos dessa forma. Esse esporte proporciona muito prazer e muita adrenalina, e me trouxe um monte de coisas.
SIDINEI GUIMARÃES DE FREITAS, O SIDI
PRATICANTE E INSTRUTOR DE KITESURF
— Vamos em busca de manobrar e saltar. É como um brinquedo, só que de gente grande, e nos divertimos dessa forma. Esse esporte proporciona muito prazer e muita adrenalina, e me trouxe um monte de coisas. Para mim, estar lá dentro é indescritível — comenta Sidi.
Entre os melhores lugares para a prática do esporte, o instrutor cita Fortaleza, no Ceará, que considera “o maracanã do kitesurf”, pelo vento constante, todos os dias. Só que lá o mar é baixo, ou seja, sem ondas grandes. Isso faz com que, depois de três ou quatro dias, já comece a sentir falta do litoral gaúcho:
— Daí tu pergunta para mim se troco um dia clássico aqui por lá? Claro que não. Aqui, é sensacional. Na nossa região aqui, quando encaixa tudo certo no kitewave fica de verdade, com potência de vento e ondulação.
O problema é quando o vento "desaparece”. Sidi aponta que, às vezes, chega a ficar 15 dias sem as rajadas perfeitas para velejar. Nesses períodos, começa uma torcida pela vinda do Nordestão. E quanto mais forte for, melhor.
— Neste verão está rolando vento direto, mas o legal mesmo e o que eu gosto é o nordeste. Em função de aula, também tem que ser o nordeste, com o leste não dá. Mas a galera que aprende aqui, veleja em qualquer lugar do mundo — enfatiza.
Windsurf troca a pipa por uma vela
Para a prática de windsurf, a lógica é praticamente a mesma. A diferença é que, no lugar de uma pipa suspensa no ar, utiliza-se uma vela acoplada na prancha para velejar sobre as águas, com a força do vento. Além disso, a prancha costuma ser maior do que a de surf. O esporte surgiu mais de uma década antes do kite e já teve altos e baixos, com um pico de interesse na década de 1990, quando começou a aparecer em novelas, explica Elias Seadi, 36 anos, instrutor de kitesurf na escola que leva seu nome e oferece aulas de diferentes modalidades aquáticas no Kite Point Lagoa do Armazém, em Tramandaí.
— O interesse de ambos é o vento. Muitos migraram do windsurf para o kite, depois retornaram, mas são dois esportes bem distintos. No kite, se o aluno cai, a pipa fica em cima, sustentando. No wind, quando a vela cai na água, tem que fazer força para puxar — destaca Alexandre Jung, 60 anos, que é instrutor de windsurf na escola de Seadi.
O esporte também tem diferentes modalidades, sendo que uma delas é praticada no mar, com ondas, e outra em lagoas. Chamada de slalom, a categoria envolve velocidade, ou seja, invés de fazer manobras sobre as ondas, o praticante percorre a extensão de água com mais rapidez, a cerca de 60 km/h.
Por isso, assim como no kitesurf, o melhor vento para a prática é o Nordestão.
— O terror do veranista é a nossa glória. Fazemos o movimento contrário: quando o pessoal está aqui dizendo “não deu para ficar na praia, tem guarda-sol voando”, chegou a nossa hora — diverte-se Jung.
Em 25 de janeiro, quando a reportagem visitou o Kite Point, o vento era de quadrante leste. E, apesar da percepção de intensidade ser grande para as pessoas, as rajadas não estavam fortes o suficiente para que os instrutores conseguissem ganhar tanta velocidade no wind. De toda forma, foi possível velejar mais devagar.
Além do vento, o local tem influência na hora de praticar e aprender o esporte, segundo Jung e Seadi. Ambos consideram a Lagoa do Armazém o “berçário” de praticantes do Rio Grande do Sul.
— Criamos esse espaço há três anos e é 100% focado no conforto do velejador. Essa lagoa e essa região são tão especiais que vêm pessoas de outros Estados para praticar o esporte. Todo mundo acaba reclamando do vento no Litoral, mas é o que mais temos aqui e acaba trazendo pessoas do Brasil todo — afirma Seadi, acrescentando que o Kite Point tem infraestrutura completa para receber famílias, com restaurante, piscina e quadras.
"Windsurf forever”
Natural de Novo Hamburgo, Jung foi surfista por quase três décadas e começou a praticar windsurf há 22 anos, quando buscou um esporte que pudesse praticar sem ter que viajar por muitas horas. Na maior parte desse tempo, velejou na Capital, mas há três anos foi convidado por Seadi para conhecer a Lagoa do Armazém. A partir disso, passou a velejar e dar aulas apenas no Litoral Norte.
— Me mudei, agora moro aqui. Tenho uma corretora de seguros e o escritório fica em Novo Hamburgo, daí trabalho online e dou aula de windsurf. Estamos tentando fazer com que o esporte tenha de novo o espaço que tinha anos atrás, porque ele foi esquecido, não teve uma renovação de atletas — aponta.
Estamos tentando fazer com que o esporte tenha de novo o espaço que tinha anos atrás, porque ele foi esquecido, não teve uma renovação de atletas.
ALEXANDRE JUNG, 60 ANOS
INSTRUTOR DE WINDSURF
O instrutor enfatiza que faz parte de um grupo de velejadores que chama de “windsurf forever”, porque nunca abriu mão do esporte e não o troca por nenhum outro:
— Gosto mais de praticar, mas também gosto de dar aula porque tu consegues ver a evolução do aluno. E pretendo seguir praticando até não dar mais.
O vento no RS
Mas o que o vento do Rio Grande do Sul tem de diferente? O geógrafo e climatologista Dakir Larara Machado da Silva, que atua como professor do curso de Licenciatura em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), explica que o vento é todo escoamento de ar paralelo à superfície, que ocorre pela diferença de temperatura das superfícies. E, localmente, existe um conjunto de variáveis que pode impulsionar ou dificultar esse escoamento
— No Rio Grande do Sul, temos uma costa que tem uma morfologia predominantemente retilínea e uma superfície plana, que permitem que o vento escoe ao longo do oceano, interagindo com a costa.
Por isso, o litoral gaúcho é mais beneficiado do que o catarinense neste aspecto. De acordo com o professor, o Estado vizinho tem um litoral mais “recortado”, com enseadas, baías e morros próximos à faixa de areia, o que dificulta o escoamento do vento e protege as áreas.
— O nosso litoral é mais exposto, por causa de toda essa faixa de areia que se forma do Hermenegildo até Torres. É um litoral bastante aberto e desprotegido, o que vai favorecer a entrada de vento dos quadrantes leste e nordeste. As lagoas também são áreas que estão nas planícies costeiras, o que permite velocidade e frequência maiores desse vento soprando — destaca Dakir, que trabalha no Campus do Litoral Norte, em Tramandaí.
Entre os quadrantes predominantes no litoral gaúcho, o Nordestão é ainda mais favorecido a soprar de maneira constante pelo formato e baixa rugosidade da gosta, que oferece um baixo atrito. Assim, as rajadas de nordeste “encanam” ao longo da linha de praia.
Aulas de kitesurf
- Para aprender kitesurf com Sidi, é preciso desembolsar R$ 3 mil. O investimento dá acesso ao curso completo, até que o aluno aprenda a velejar, independentemente do número de aulas.
- Contato pelo telefone (51) 98488-4555 ou pelo Instagram @kitesidi
Aulas de windsurf
- Na Escola Elias Seadi, uma aula avulsa de windsurf custa R$ 250, mas o curso básico abrange oito aulas (R$ 2 mil).
- O day use no Kite Point para o carro com uma pessoa custa R$ 40. Para cada pessoa a mais é cobrado o valor de R$ 20. É possível levar equipamento próprio para praticar os esportes ou alugar no local.
- Contato pelo telefone (51) 98196-8528 ou pelo Instagram @kitepointrs