Os evangélicos hoje representam cerca de 30% da população brasileira, mas ainda constituem um fenômeno desconhecido de parte da sociedade, ou visto de forma distorcida.
É o que afirma Juliano Spyer, antropólogo e colunista da Folha de S. Paulo que é autor do livro Povo de Deus (Geração Editorial) e coautor de Crentes (Record), em parceria com Guilherme Damasceno e Raphael Khalil.
Em conversa com os apresentadores Paulo Germano e Luciano Potter no programa Timeline da rádio Gaúcha nesta sexta-feira (21), Spyer falou sobre como os evangélicos são vistos de forma equivocada como um grupo homogêneo, como a fé vem transformando vidas nas camadas mais humildes e como se deu a mistura explosiva entre política e religião.
Leia a entrevista
Paulo Germano: Quais as diferenças entre o pensamento do evangélicos e de outros cristãos? Existe diferença entre os evangélicos, os neopentecostais, e aqueles protestantes mais tradicionais, como luteranos e presbiterianos?
Juliano Spyer: Esse é um ótimo ponto de partida porque um dos dramas que a gente vive na tentativa de estabelecer diálogo com esse grupo é tratá-los ainda como "os evangélicos", como se fosse um grupo só, homogêneo.
A grande característica do protestantismo — e quando a gente fala do evangélico, fala do protestante — é ter levado a centralidade da vida religiosa — que no catolicismo ficava no Papa, ou seja, o Papa decidia o que era certo e o que era errado — para a Bíblia. E para que você saiba o que é importante na Bíblia, você precisa: (1) aprender a ler e (2) ler essa Bíblia a ponto de, a partir da sua consciência e da inspiração que você tem da leitura, entender o que é certo e errado.
Isso se traduz em uma experiência religiosa que é, como vocês podem imaginar, absolutamente diferente. Ou seja, a possibilidade de surgimento de tradições, de práticas, de teologias é imensa.
Então, para separar esses grupos, podemos pensar nisso que vocês falaram. Eu nem falaria dos neopentecostais, mas eu falaria do protestantismo histórico, que tem uma presença muito acentuada no Rio Grande do Sul, principalmente de luteranos. No Brasil, a gente está falando de batistas, a gente está falando de presbiterianos também, uma igreja muito grande, metodistas, e por aí vai. Essas são as igrejas que foram fundadas imediatamente depois da Reforma no século 16 na Europa.
O segundo pé disso é o que a gente chama de pentecostalismo. Vou abrir um parêntese aqui só para sugerir que esse termo "neopentecostal", em geral, a gente usa incorretamente porque nem é nativo das igrejas. Foi inventado por um sociólogo da Universidade de São Paulo, Ricardo Mariano, e nenhum evangélico se identifica como neopentecostal. Em geral, isso vira uma espécie de apelido para as igrejas mais modernas.
Paulo Germano: São, por exemplo, Igreja Universal do Reino de Deus, Assembleia de Deus, essas igrejas mais recentes?
Juliano Spyer: A Universal sim, ela é descrita como neopentecostal. Aliás, é o caso típico. Mas a Assembleia de Deus é uma das primeiras igrejas pentecostais do Brasil, e ela não tem nada historicamente de neopentecostal.
O que caracteriza o neopentecostalismo? Primeiro, um uso bastante intenso do televangelismo. Esses recursos de rádio e TV começaram a ser usados intensamente nos Estados Unidos nos anos 1950 e são aplicados aqui a partir dos anos 1960 e 70.
E também isso que a gente chama de teologia da prosperidade, que é uma coisa também bastante particular. Não quer dizer necessariamente ficar rico, mas ter a perspectiva de que, para você viver como cristão de um jeito melhor, é bom que você tenha algum tipo de conforto: conforto familiar, conforto de saúde e por aí vai.
Mas como eu disse, (neopentacostalismo) é um termo acadêmico que acabou entrando em circulação no nosso debate público, mas muitas vezes é usado de um jeito impreciso. Eu sugiro pentecostalismo, que daí a gente pega todas elas.
Se a gente tem como referência as igrejas históricas, tem aquele culto mais raciocinado, o pastor é um erudito, muitas vezes aprende grego e latim no seminário, enfim, aprende essas outras línguas e faz uma análise, quase uma aula nos cultos.
E o pentecostalismo é esse tipo bastante diferente, de uma experiência litúrgica bastante intensa, com emoções, com choro. A gente muitas vezes brinca por causa do volume do microfone, ou seja, uma fala exaltada.
Para começar, são esses grupos, mas a gente poderia inserir aí um milhão de possibilidades intermediárias por conta dessa possibilidade que tem do protestantismo de se reinventar a partir da interpretação nova da Bíblia.
Então a gente vê mais recentemente, por exemplo, aparecendo aqui no Brasil experiências que são chamadas na academia de pós-denominacionais, ou seja, experiências de Igreja sem Igreja. Igreja acontecendo a partir de encontros nas casas das pessoas. É um problema a gente falar de um mundo tão diferente como se ele fosse um só.
Paulo Germano: Tem se falado muito sobre como conquistar o voto dos evangélicos, por que a esquerda não consegue conversar com os evangélicos, por que a direita tem falado mais com os evangélicos. Existe uma preocupação geral das diferentes correntes ideológicas em conquistar essas pessoas. Qual é a importância delas nos rumos da sociedade e o que elas pensam, de um modo geral, se é que dá para dizer, porque são muito heterogêneas?
Juliano Spyer: Nos anos 1970, ou seja, há aproximadamente 50 anos, o número de evangélicos no Brasil, de acordo com o Censo dos anos 1970, era de 6% da população. Cinquenta anos depois — é o último dado que a gente tem, de 2020, do Datafolha —, a gente está falando que de cada três brasileiros, um é evangélico. Então, mais de 30%.
Mas a questão não é o tamanho brutal dessa comunidade, nem a maneira acelerada como ela cresce. A importância desse povo é principalmente o fato de ele ser desconhecido principalmente de a elite mais escolarizada, que olha para a religião a partir de uma perspectiva geralmente católica.
Ainda somos a maior nação católica, e nossas classes médias e altas são ainda principalmente católicas. Por serem mais escolarizadas, elas se sentem no direito de entender as coisas e, no entanto, são muito pouco treinadas para falar sobre o fenômeno evangélico, que é essencialmente popular.
Esse é o grande drama que a gente está vivendo. A gente está, de uma maneira sem precedentes no mundo, transformando uma nação, que é a maior nação católica do mundo, numa nação protestante, e isso deve acontecer nos próximos 10 anos. No entanto, quando a gente fala sobre esse cristianismo evangélico, protestantismo, em geral, a gente está falando sempre da mesma história, que é o pastor mal-intencionado e o evangélico coitadinho, que não sabe nada, que é manipulado.
Não estou dizendo que esses não sejam problemas importantes, estou dizendo que tem muito mais coisa a ser dita aí do que simplesmente isso. Para esclarecer: não sou evangélico e não estou pregando aqui. Sou antropólogo e pesquisador, fiz o meu trabalho de campo, durante 18 meses, com muito contato com esse grupo. Onde eu morava, tinha uma igrejinha católica, nove terreiros de candomblé e mais de 80 igrejas evangélicas. A coisa que, em geral, passa batido é o quanto essa igreja tem impacto interessante em um fenômeno brasileiro superconhecido nas camadas populares, que é a violência doméstica associada ao álcool.
Quando você passa por esse processo de conversão e você precisa abdicar de algumas coisas, e o álcool sai dessa socialização masculina no bar, você fortalece famílias que, a partir disso daí, vão ter principalmente recursos redirecionados para educação, plano de saúde, melhorias da casa.
Outra coisa que, para mim, é especial é que o crente precisa aprender a ler, porque é pela leitura que ele vai acessar a Bíblia. Mas a gente não leva em consideração que, nesse processo, ele está aprendendo e treinando a leitura o tempo todo, o que tem desdobramentos para o trabalho dele.
No lugar em que eu morei, em uma quebrada, um bairro muito distante de Salvador, são pessoas que geralmente têm Ensino Fundamental não concluído. Não sabem ler e não usam a leitura e a escrita para trabalhar, porque são faxineiros, cozinheiras, motoristas, etc. Por essa exposição à leitura regular, que é o que acontece no dia a dia do crente, essas pessoas vão migrando para empregos mais bem remunerados e com progressão de carreira.
Você se torna um secretário, começa a trabalhar na área administrativa, ao mesmo tempo em que apoia o seu filho ou a sua filha quando essa pessoa tem interesse de estudar.
Paulo Germano: A impressão que dá é que esse pessoal atribui as conquistas sociais a Deus porque estão entrando em contato com Deus no momento em que estão lendo com muita frequência a Bíblia. Quer dizer, deixa de se ter uma visão de que a ascensão social pode ser atribuída, por exemplo, a um governo, e isso acaba sendo uma obra diretamente de Deus, me parece. Minha dúvida é o quanto isso muda a maneira que esse pessoal tem de votar, de encarar a política.
Juliano Spyer: Essa semana eu escrevi sobre o que potencialmente pode estar levando — pelo menos aqui em São Paulo, não sei no Rio Grande do Sul — inclusive pessoas de esquerda a considerar, de alguma forma, o Tarcísio (de Freitas, governador de São Paulo) como uma boa alternativa para a sucessão presidencial do ano que vem.
Parece uma incongruência. Como é que alguém de esquerda vai aprovar e, de alguma forma, esperar que o governador eleito a partir do esforço do ex-presidente Jair Bolsonaro seja alguém viável, interessante?
E o motivo para isso é o quanto as igrejas evangélicas estão divididas hoje entre dois grupos. Tem o grupo da direita radicalizada, que está muito presente e muito atuante dentro das igrejas, e tem outro grupo, igualmente forte, interessado e articulado, que é das pessoas que não querem a política dentro das igrejas. Não é da esquerda. A esquerda é muito minoritária, principalmente nas igrejas pentecostais, que são as igrejas mais fortes do país hoje, com milhões de membros.
Candidatos ou pré-candidatos que causem paixões — por exemplo, Bolsonaro, Lula, enfim, todos esses que, de alguma forma produzem isso que a gente vem chamando de polarização — vão, de alguma forma, fortalecer dentro das igrejas o grupo que, naquele momento, se alia a esses candidatos de extrema-direita para usar a igreja a favor.
E daí vêm coisas que a gente deve, sim, criticar, que é essa mistura bastante complicada de política com religião, que a gente vê com frequência, por exemplo, quando o candidato é chamado para o altar da igreja e se faz oração por ele. Isso cria um constrangimento nas outras pessoas, como se aquela indicação e aquela oração dissesse que esse é o candidato de Deus.
Então, um candidato que gera menos emoção, por exemplo, o governador Tarcísio, mas não só ele, seria alguém que manteria as igrejas menos envolvidas e menos engajadas nesse esforço.
Luciano Potter: O confronto Lula e Bolsonaro entrou em boa parte das casas brasileiras. A gente viu famílias se estranhando, brigando, casamentos acabando. Não querer esse tipo de batalha, tipo Lula e Bolsonaro, é porque isso atrapalha a família dentro dessa linha de raciocínio de 30% da população brasileira que é evangélica?
Juliano Spyer: A família é um tema muito importante. Eu falaria primeiro de como a família vem sendo mobilizada como uma maneira de convencer essa fatia da população de uma coisa nova.
A novidade é a ideia de que se você votar em um político de esquerda, você vai pecar junto com esse político. Antes, isso não existia. Você entendia: "Quando ele peca, ele peca sozinho. E se ele decidir ser a favor de pautas que eu não estou de acordo, é uma decisão dele. Mas ele me atende porque ele traz esse tipo de benefício para a minha comunidade. Eu posso escolher entre as várias candidaturas ofertadas”.
A partir dessa narrativa (da polarização), que é uma maneira de politizar o religioso a partir do debate teológico, você cria ali uma sensação de ansiedade entre as pessoas que olham para as várias possibilidades e falam: "Esses daqui eu tenho que descartar porque se eu apoiar essas pessoas, vou estar pecando com elas".
Luciano Potter: Então, independente de Bolsonaro e Lula, qualquer candidato pode causar algum tipo de estranhamento dentro da família?
Juliano Spyer: Qualquer candidato de esquerda. O que vem sendo falado principalmente nas igrejas é que você tem que escolher entre ser de esquerda ou ser evangélico. Você não pode ser as duas coisas. E isso é uma novidade que, muito em função da falta de preparo da esquerda para ter esse debate dentro das igrejas e com essas pessoas, vem ganhando terreno dentro desse grupo importante, que não só é numericamente grande, mas é imensamente articulado e coordenado.
Luciano Potter: Por que a esquerda não conversa com essas pessoas?
Paulo Germano: Complementando: onde está a estratégia equivocada para abordar essas pessoas dessas outras correntes políticas, especialmente mais à esquerda?
Juliano Spyer: Eu não diria que é uma estratégia equivocada, eu diria que é uma condição que vem do fato da esquerda estar governando há muito tempo e estar no poder a partir de referências que não são atuais.
Não só com evangélicos, mas também em relação a telecomunicações. Você vê como a direita usa de uma forma muito mais interessante e articulada essas novas mídias, e a esquerda patina, porque depende ainda das mídias tradicionais.
É a questão geracional em função de onde vem a esquerda e de onde a esquerda hoje atua. A esquerda, se a gente fala especificamente do PT, a gente pensa numa presença de três blocos que dialogavam: o PT dos sindicatos, o PT da igreja católica e o PT das universidades.
Luciano Potter: E esse sentimento anti-esquerda a gente pode homogeneizar? Você explicou para a gente que são muitos blocos diferentes dentro desse universo evangélico, mas nesse sentimento há uma homogeneidade?
Juliano Spyer: Há uma homogeneidade bastante acentuada, até maior do que entre direita e esquerda, em relação às pautas morais. As pautas morais são, por exemplo, a questão do aborto, do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Hoje está muito acentuada a questão da educação sobre temas de sexualidade nas escolas. Esses são os assuntos importantes hoje.
A dificuldade da esquerda está muito associada, primeiramente, ao fato de a esquerda estar hoje, principalmente, posicionada dentro das universidades. Acha que religião é bobagem, não tem contato com religiosos. A perspectiva é sempre iluminista, ou seja, a religião ou é uma coisa antiga, que a gente tem que estudar porque fez parte da história, mas é uma bobajada que a ciência explica, ou é uma coisa terrível porque ela ajuda a manipular. E quando você descarta a possibilidade de usar o idioma religioso para conversar com as pessoas, você perde imediatamente o contato com esses 30% do Brasil.
Paulo Germano: Por que em muitos casos os evangélicos — ou os cristãos, de modo geral — estão entendendo como positivos aspectos que, em algumas avaliações sobre o que Jesus pregava, seriam negativos? O uso de armas, a não aceitação total de determinados grupos de pessoas, o preconceito, a violência no discurso, a não aceitação, por exemplo, de pessoas homossexuais ou de entender que isso não é obra de Deus. São coisas que estão, às vezes, muito presentes no Antigo Testamento, mas no Novo Testamento, a partir de Jesus mesmo, parece haver aí alguma contradição. Por que pensam desse jeito e onde está a consistência para pensar assim? Onde diz que eles devem pensar assim?
Juliano Spyer: A gente pode primeiro falar por que evangélicos têm uma perspectiva mais conservadora no campo dos costumes pensando que essa tradição cristã chegou ao Brasil no século 19, inicial e principalmente por meio de migrações de evangélicos batistas dos Estados Unidos, com valores muito puritanos, muito conservadores, nesse campo dos costumes.
Se tivessem sido, por exemplo, suecos, europeus, que estão mais presentes, por exemplo, no Rio Grande do Sul, nós teríamos certamente uma visão muito diferenciada, por exemplo, de valorização da comunidade, essa história que vocês conhecem com mais clareza dos missionários que chegam e, antes de fundar a igreja, eles fundam a escola. Mas a tradição americana é uma tradição principalmente de inspiração puritana, muito interessada nesse campo do controle do corpo e do pecado, e por aí vai.
Você falou uma coisa que destoa disso, e eu concordo com você. Uma coisa é esse problema que não é de agora, essa questão que é uma visão bastante conservadora em relação a com quem as pessoas se deitam, o que elas fazem, que tipo de produtos elas consomem. Isso é uma coisa que já existia antes, inclusive na Igreja católica, ou seja, o conservadorismo não é uma inovação dos protestantes. Mas o que você falou sobre esse aceitar, por exemplo, da violência, da história de que bandido bom é bandido morto, de pastor fazendo arminha, isso de fato é o resultado dessas duas últimas eleições presidenciais, em que a gente viu uma convergência, por oportunidade dos interesses, de líderes das grandes igrejas do Brasil, com um projeto político de direita. Dentro dessa mistura, esse tipo de valor acabou sendo abraçado em algumas igrejas.
Mas isso não é uma coisa universal dentro das igrejas. Eu diria que a pauta de costumes sim, mas essas ideias sobre violência, sobre maneira de tratar pessoas, não. Ao contrário, historicamente o que o evangélico fala é que o bandido bom é bandido na igreja. Fala muito sobre recuperação. E isso dá a perspectiva de como o ambiente das igrejas ficou tumultuado por conta dessa mistura nova, principalmente nos últimos 10 anos, da igreja com política.