Quem vive em Porto Alegre, especialmente no período de verão, sabe: a cidade parece ferver. Nos bairros com pouca vegetação, em que o concreto e o asfalto predominam, a sensação sempre é de calor elevado.
Conforme a Organização Meteorológica Mundial (OMM), o ano de 2024 foi o mais quente já registrado, sendo que os últimos 10 anos tiveram temperaturas recordes.
E o problema é mais grave do que parece. Um estudo publicado na revista Advances in Atmospheric Sciences mostra que o aquecimento dos oceanos no ano passado teve papel determinante nas altas temperaturas do planeta.
Segundo o Instituto de Física Atmosférica da Academia Chinesa de Ciências, o oceano está mais quente não somente na superfície, mas também a 2 mil metros de profundidade.
Dessa maneira, os grandes centros urbanos também sentem os efeitos desse calor extremo. Tudo integra o pacote do que costumamos chamar de mudanças climáticas. Elas estão em curso em diversos lugares.
Planejamento de arborização
O professor do Departamento de Botânica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenador do Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (InGá), Paulo Brack, afirma que é necessário haver um planejamento de arborização na Capital:
— Precisamos incrementar ainda mais a arborização para diminuir o excesso de calor principalmente no verão, quando a incidência do sol no asfalto e no cimento faz com que a temperatura se eleve e forme o que se chama de ilhas de calor ou térmicas.
Em 4 de fevereiro deste ano, o docente realizou um teste no piso instalado no Parque Maurício Sirotsky Sobrinho, que teve 103 árvores extraídas durante a revitalização do espaço. Ele constatou que a temperatura registrou incríveis 61ºC, enquanto, nas áreas sombreadas e com vegetação, foi registrada uma média de 31ºC.
No caso de Porto Alegre, é necessário impedir a produção de grandes massas edificadas na Orla, porque isso tem um conjunto de impactos
EBER PIRES MARZULO
Docente da UFRGS
Por isso, Brack sugere um programa ambiental que envolva a criação de um espaço maior nas calçadas para as árvores terem condições de crescimento e não ficarem simplesmente estranguladas pelo cimento:
— Esse estrangulamento prejudica, e muitas quedas (de vegetais) decorrem dessa má gestão das calçadas e das podas muito intensas, que debilitam e deixam as árvores sujeitas a bactérias e doenças.
Conforme cita, há estudo de locais na cidade onde a absorção do calor acontece pela ausência de vegetação. A Estação Rodoviária e a pedreira do Morro Santana, por exemplo, foram objetos desse trabalho e registraram de 2ºC a 3ºC acima da média da cidade.
Prédios espelhados
Brack tece observações ainda sobre a questão dos prédios espelhados existentes no Centro Histórico. Segundo o biólogo, o espelhamento precisa ficar concentrado no topo das edificações para refletir a luz do sol e não absorver:
— Essa reflexão não deve ser feita nas laterais dos prédios, porque pode potencializar ainda mais a luz do sol para as áreas abertas e trazer um desconforto térmico maior. Sem contar as árvores que se chocam com esse espelhamento.
O piso das cidades é outro ponto mencionado. Em diversos lugares, o asfalto predomina e não absorve a água da chuva. Dessa maneira, a impermeabilidade potencializa a possibilidade de alagamentos.
— Quanto maior a quantidade de vegetação e jardins, essa água será capturada em parte e não vai escoar tão rápido em áreas sem vegetação. A água vem muito rápido no asfalto e acaba alagando a cidade — expõe o docente.
Cidade-esponja e cinturão ecológico
O presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Apagan), Heverton Lacerda, introduz no debate o conceito de cidade-esponja, que facilita a absorção da água e contribui para a prevenção de enchentes:
— Nas metrópoles, em especial, o conceito de cidade-esponja deve ser ampliado para o de cinturão ecológico, que, além de promover a produção de alimentos livres de agrotóxicos, ajuda a proteger as cidades do calor e em casos de extravasamentos de corpos hídricos. A produção ecológica convive bem com a biodiversidade ao seu redor, incluindo as matas naturais, que são importantes para o equilíbrio do clima — pondera.
Lacerda cita a importância da ampliação do processo de plantio de árvores na Capital e a redução do asfalto e do concreto:
— Nas cidades, é fundamental ampliar e qualificar a arborização, assim como diminuir as áreas concretadas e asfaltadas. Zonas impermeabilizadas não ajudam a dissipar o calor nem absorvem as águas superficiais em casos de enchentes. Espaços com árvores mais fortes e sadias têm mais resiliência natural.
Telhados e paredes verdes
O geólogo e professor da UFRGS Rualdo Menegat, responsável pelo Atlas Ambiental de Porto Alegre, acredita que o mais significativo seria haver um programa continuado para resolver questões como o fato de a cidade ser altamente reflexiva do calor e ainda absorver esse mesmo calor.
— Precisamos dificultar a reflexão do calor, com telhados e paredes verdes. A vegetação tem uma capacidade muito melhor do que o concreto e de superfícies lisas de absorver e não refletir o calor — compartilha.
O verde urbano, segundo avalia, é algo que necessita ser planejado, inclusive nas praças e nos parques. As áreas verdes precisam ser conectadas.
— Uma excelente estratégia seria não só a arborização das ruas, mas também criar minibosques na cidade conectados. Hoje, isso está sendo adotado em São Paulo — exemplifica.
Bloqueio da refrigeração natural
O geólogo comenta que seria necessário desenvolver modelos sobre a circulação dos ventos na cidade. Ele afirma que a construção de edificações altas em uma área como a Orla do Guaíba não seria apropriada, pois poderia bloquear a refrigeração natural:
— A velocidade dos ventos diminui perto da superfície, porque as cidades freiam os ventos e canalizam eles em ruas muito fechadas. Os ventos não atuam nas superfícies urbanas na altura das pessoas que caminham nas ruas. Então, a sensação de calor aumenta muito. As cidades, devido à maneira como foram construídas, têm dificuldades de se refrigerar.
Através dos totens, vamos emitir alertas à população para que as pessoas consigam se prevenir e saibam o que fazer nesse momento.
ROVANA REALE BORTOLINI
Diretora de Projetos e Políticas de Sustentabilidade na Secretaria do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (Smamus)
Conforme o professor de Arquitetura e Urbanismo, Marcelo Arioli Heck, coordenador do curso de Especialização em Cidades da Unisinos, a principal questão diz respeito à absorção dos materiais:
— As superfícies de concreto e o asfalto acabam mantendo muito o calor. Os materiais utilizados e edificações muito altas, às vezes, podem alterar ou interferir nas correntes de vento que servem para afastar essas ilhas de calor.
Para Heck, o modelo de cidade passa pelo Plano Diretor.
— Londrina, no Paraná, e Goiânia, em Goiás, têm alguns corredores verdes e avenidas mais largas. Não com mais faixas de rolamento, mas com mais canteiros — exemplifica, dizendo que atualmente não se vê tanto a questão da arborização em Porto Alegre.
Alterações do solo
O doutor em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental e professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH/UFRGS), Fernando Dornelles, explica que a Capital passou por diversas alterações do solo ao longo de sua história, com muitas ruas abertas e obras construídas:
— Quando o sol bate nessas superfícies, elas vão interagir com essa radiação eletromagnética que é do sol. Então, alguns materiais vão absorver mais; outros, refletir mais. Ter superfícies mais claras e reflexivas vai evitar que essa radiação seja absorvida e transformada em calor aquecendo esses corpos.
Segundo Dornelles, as ilhas de calor acontecem em função de transformações na superfície, citando que a vegetação urbana é essencial nesse processo.
Conceito de cidade-esponja deve ser ampliado para o de cinturão ecológico, que, além de promover a produção de alimentos livres de agrotóxicos, ajuda a proteger as cidades do calor.
HEVERTON LACERDA
Presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural
Medidas urgentes
O professor de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional Eber Pires Marzulo, da Faculdade de Arquitetura da UFRGS, sugere três medidas urgentes para diminuir as altas temperaturas na Capital:
— É preciso parar com a retirada de árvores e com a implantação de asfalto. No caso imediato de Porto Alegre, é necessário impedir a produção de grandes massas edificadas na Orla, porque isso tem um conjunto de impactos — avalia, acrescentando:
— Tem ainda que retirar o asfalto e voltar para outros padrões de pavimentação. Ainda quero ver isso: a cidade retirando o asfalto.
De acordo com Marzulo, não é possível que se autorizem novos empreendimentos robustos, que ceifam dezenas de exemplares de vegetais.
— Os grandes empreendimentos geram uma maior impermeabilização do solo. São produzidos com materiais como alvenaria, concreto armado e vidro, que aquecem — critica.
O docente diz que é preciso incentivar o transporte coletivo com ar-condicionado com maior circulação nas zonas mais afastadas, na intenção de diminuir o número de carros nas ruas.
Além disso, o professor pede mais centros comunitários com piscinas em Porto Alegre, mais espelhos d'água nos parques, e dá uma sugestão para aliviar o calor das pessoas nas vias públicas.
— Deveria ter ruas com jatos de água. No Rio de Janeiro, no calçadão, há partes com borrifadores de água.
Em Campo Bom, por exemplo, a prefeitura instalou um chafariz em praça pública (galeria de fotos acima), que moradores e, principalmente, crianças aproveitam para amenizar o calor.
Marzulo também sugere que a população das comunidades mais carentes possam passear e se refrescar nos shoppings sem se sentirem obrigadas a consumir algo.
— É preciso permitir o acesso às estruturas existentes, implementar novas estruturas e equipar aquilo que já existe, como os parques.
Iniciativas da prefeitura
A diretora de Projetos e Políticas de Sustentabilidade na Secretaria do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (Smamus), Rovana Reale Bortolini, explica o que tem sido feito em termos de política pública para tornar Porto Alegre mais resiliente ao calor.
— Tínhamos conhecimento de que essa era uma ameaça que chegaria a Porto Alegre. Por isso, começamos o planejamento do Plano de Ação Climática (documento que traz 30 ações para reduzir as emissões de gases de efeito estufa). Iniciamos com o inventário, e o próximo passo será estabelecer ações para todas as ameaças — diz.
Conforme a prefeitura, uma das maiores ameaças estudadas são as ondas de calor.
— É importante dizer que é a ameaça que mais mata hoje, por uma questão de desidratação e falta de regulação térmica do próprio corpo, que atinge principalmente os idosos e as crianças.
As ações de monitoramento englobam a implementação de totens para a Defesa Civil e os medidores da qualidade do ar, que serão instalados em breve.
— Eles têm sensores meteorológicos e são colocados em pontos específicos da cidade onde a temperatura nesses locais será estudada. Através dos totens, vamos emitir alertas à população para que as pessoas consigam se prevenir e saibam o que fazer nesse momento — antecipa.
Planejamento
Conforme a diretora, a questão da arborização integra a parte estratégica das ações. De acordo com Rovana, em 2024 foram plantadas 3.333 mudas na Capital. No viveiro municipal, têm sido cultivadas espécies nativas, e há o inventário da arborização na cidade.
— Não adianta plantar qualquer árvore em qualquer lugar. Para conseguir diminuir a temperatura e absorver gás carbônico, tem que ser uma árvore nativa com substrato adequado e local apropriado para esse plantio — ilustra.
Segundo Rovana, está prevista a ampliação do sombreamento nos espaços públicos. A possibilidade de oferecer mais bebedouros e jatos de água vindos do chão também são ideias que estão sendo estudadas.
— Estamos trabalhando fortemente na arborização. As áreas de sombreamento estão no começo e o outro ponto é essa questão da água, que ainda não iniciamos.
Em relação às edificações privadas, a diretora lembra que existe há dois anos um programa de certificação sustentável, que são incentivos dados para as construções que auxiliem nos microclimas da cidade.
Cerca de 180 edificações já receberam a certificação. Paredes e telhados verdes, pavimentos permeáveis nos lotes, ventilação natural e questões de eficiência energética pontuam para essas edificações.
— A onda de calor é uma ameaça real, que foi estudada. Temos uma série de ações para combatê-la, sendo a principal a arborização e o melhoramento dos prédios privados — conclui.
Veja as principais sugestões dos especialistas:
- Incrementar a arborização
- Mais espaço para as árvores se desenvolverem nas calçadas
- Mais jardins e vegetação
- Mais telhados e paredes verdes
- Mais espelhos d'água nos parques
- Criação de minibosques conectados
- Menos asfalto no piso para a água poder ser absorvida pelo solo
- Proibição de edificações altas na Orla do Guaíba
- Espelhamento para refletir os raios solares nos topos dos prédios, mas não nas laterais
- Criação de modelos sobre a circulação dos ventos
- Criação de corredores verdes e avenidas mais largas com mais canteiros
- Criação de jatos e borrifadores de água que saem do piso
- Usar materiais mais sustentáveis nas edificações
- Usar materiais mais claros e criar isolamentos térmicos melhores nos prédios
- Incentivar o uso do transporte coletivo com ar-condicionado
- Ampliar os centros comunitários com piscinas
- Criação de cinturões ecológicos para ajudar na produção de alimentos livres de agrotóxicos e na proteção das cidades do calor
- Utilizar o estoque imobiliário disponível nos prédios