A venda dos dados da íris dos olhos em troca de criptomoedas tem gerado debates e vídeos com milhares de visualizações no TikTok e no Instagram.
O escaneamento dos registros traz uma série de questionamentos, especialmente sobre o uso dessas informações pessoais (veja, mais abaixo, o que dizem especialistas).
Empresa responsável pelo escaneamento da íris, a World começou a operar no país em novembro de 2024. Por enquanto, atua em 38 pontos físicos de São Paulo.
A Tools for Humanity, com sede em San Francisco (EUA) e em Munique (Alemanha), é a responsável pela operação da World. Em sua página, define-se como "uma empresa de tecnologia que desenvolve projetos para humanos na era da IA." Basicamente, cria ferramentas e tecnologia para que o protocolo World possa seguir em evolução.
O objetivo do processo é criar um passaporte digital, chamado de World ID, para distinguir humanos de robôs e evitar possíveis fraudes na internet, como, por exemplo, a criação de perfis falsos.
Segundo a World, a empresa já escaneou a íris de mais de 400 mil brasileiros e mais de 1 milhão deles têm conta no World App — um aplicativo que permite realizar transações com a criptomoeda da companhia. A moeda foi batizada de Token Worldcoin (WLD). A World assegura que não há cobranças para quem deseja ceder seus dados.
O gerente de operações da Tools for Humanity, parceira da World, Rodrigo Tozzi, afirma que a ideia é expandir a operação, inclusive com Porto Alegre no radar do projeto:
— Nosso plano é expandir o máximo que a gente pode em território nacional. Neste momento, não há nenhum plano definido, mas num futuro próximo, a ideia é expandir para diversas outras cidades.
Idealizado por Alex Blania e Sam Altman, o CEO da OpenAI, o projeto da World tem despertado a atenção das pessoas. Tozzi reafirma quais são os objetivos:
— O grande objetivo é criar a maior rede exclusivamente de humanos do mundo. Uma rede livre de inteligência artificial, de automações por computadores. Ser uma rede só de humanos.
Como funciona o processo
As pessoas interessadas em escanear a íris precisam baixar o aplicativo World App. Na sequência, é preciso agendar atendimento em um ponto físico da World. Lá, uma câmera chamada Orb escaneia os dados. Em seguida, a foto é criptografada e encaminhada ao aplicativo no celular da pessoa.
A estimativa da World é que todo o processo, desde a chegada do cliente ao local até o envio do escaneamento, demore 10 minutos. E a verificação na frente da câmera leva menos de um minuto.
De acordo com a empresa, os dados são deletados da Orb. Durante o procedimento, os clientes não precisam compartilhar informações como nome, número de telefone, e-mail e endereço residencial. Mas é necessário assinar um termo de consentimento onde está explicado como funciona o serviço e a operação. Menores de idade não podem participar.
— A Orb nada mais é do que uma câmera de altíssima definição. Tira três fotos do rosto do usuário. Uma do rosto em si e uma de cada olho em detalhe. Com essas três fotos, a Orb tem um software gravado nela, que consegue fazer a verificação de humanidade. E consegue validar que aquela pessoa é um humano de fato. Com as fotos, consegue fazer a biometria através da íris e validar que aquele humano é único, que não seja alguém já verificado anteriormente e que evita a sobreposição entre dois humanos distintos — detalha Rodrigo Tozzi.
Pagamento por criptomoedas
O pagamento na criptomoeda varia da cotação do Token no dia e da taxa do dólar. O cliente recebe 48 tokens ao longo de 12 meses. Desse total, 20 tokens são disponibilizados 24 horas após a verificação da íris. E os demais 28 são distribuídos mensalmente ao longo de um ano.
— O valor hoje (quarta-feira, 15) está dando R$ 614 na conversão direta. Alguns usuários podem vender os tokens no mercado e transformar isso em reais. Outros podem optar por guardar esses tokens com participação no projeto — observa.
O grande objetivo é criar a maior rede exclusivamente de humanos do mundo. Uma rede livre de inteligência artificial, de automações por computadores. Ser uma rede só de humanos.
RODRIGO TOZZI
Gerente de operações da Tools for Humanity, parceira da World
Questionado se é possível alguma pessoa remover esse escaneamento no futuro, ou seja, voltar atrás e não ter mais os dados verificados, Tozzi diz que, nesses casos, nem é necessário procurar a empresa.
— Dentro do próprio aplicativo, tem um local que o usuário vê as informações e tem um botão onde pode permanentemente apagar as informações — esclarece Tozzi, ressaltando que o controle total da ação fica nas mãos do cliente.
Acerca dos questionamentos sobre rastreabilidade e o que é feito com esses dados, o gerente fala sobre o futuro:
— A prova de humanidade, ou a ferramenta que comprove a humanidade, vai ser indispensável para a internet nessa era de inteligência artificial. Para que nós humanos possamos aproveitar melhor todo esse ecossistema que está sendo criado.
Conforme o representante da World, nunca houve problemas de vazamentos:
— Hoje, eu diria que é praticamente impossível essa informação ser reconstruída a partir do que está disponível nos servidores.
Governo federal pede informações
Na véspera do lançamento das operações no país, a equipe de fiscalização da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), que é vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, reuniu-se com representantes da World. O objetivo foi obter informações sobre o procedimento.
Zero Hora entrou em contato com a ANPD para solicitar um posicionamento sobre o tema.
Na nota encaminhada à reportagem, a ANPD alertou para uma série de riscos e orientou sobre alguns procedimentos necessários ao se aceitar fazer o escaneamento da íris.
"É crucial que o titular de dados entenda os riscos associados ao tratamento de seus dados pessoais, em particular os biométricos, e conheça os direitos e as garantias asseguradas pela LGPD", diz trecho da nota. (Confira ao final da matéria).
Especialistas questionam rastreabilidade dos dados
Advogado especialista em Direito Digital e professor da Faculdade do Ministério Público, Juliano Madalena, destaca que a legislação brasileira não proíbe o tratamento de dados sensíveis.
— Não é vedado, no direito brasileiro, o tratamento de dados sensíveis, aqui incluso, os chamados dados biométricos. É possível que nós tenhamos também a compreensão de uma maior aplicação daquilo que a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) impõe ao sistema jurídico brasileiro — afirma.
Porém, a pessoa que fornece seus dados precisa saber para qual fim serão utilizados, inclusive tendo conhecimento de todo o processo da operação.
— Basicamente, é indispensável que nós tenhamos o atendimento da chamada finalidade, através das quais os dados estão sendo tratados, toda a operação de tratamento, se ela é sensível ou não. Precisa de uma finalidade bem individualizada e delimitada e o que chamamos de adequação — detalha.
No momento em que o titular dos dados cede o dado para terceiros, quais são as garantias que serão armazenados de forma adequada e só serão compartilhados com as pessoas que o titular autorizar
JULIANO MADALENA
O advogado reflete que é necessário haver total transparência na criação do passaporte virtual:
— A rastreabilidade das operações de tratamento de dados pessoais é indispensável. O titular não pode simplesmente ceder os seus dados pessoais e perder o controle sobre como serão tratados, qual será o alcance e com quem eles serão compartilhados.
Madalena cita riscos para o cidadão que optar pela cessão dos dados da íris, seja para um órgão público ou uma empresa privada. Além disso, ele acredita que a própria LGPD precisará se adequar em relação ao processo de venda da íris.
— O maior risco diz respeito à segurança dos dados pessoais e à rastreabilidade dos dados, em especial à íris. No momento em que o titular dos dados cede o dado para terceiros, quais são as garantias que serão armazenados de forma adequada e só serão compartilhados com as pessoas que o titular autorizar ou que, por força de contrato, isso seja determinado. Já está provado na história da nossa sociedade que dados pessoais são objetos de vazamentos — relata.
Segundo Juliano Madalena, no momento em que é depositado todas as operações em um dado, que amanhã venha a ser objeto de vazamento ou de incidente de segurança da informação, podemos ficar à mercê de um maior ilícito:
— A questão é: para quem vamos confiar um dado pessoal que tem tamanha importância na vida de todos nós se os nossos CPFs, RGs já são objetos de vazamentos reiterados. O desafio é este: os dados serão armazenados em locais seguros? Os contratos com o titular serão cumpridos? O titular poderá apagar esse dados e ter o controle de como são tratados?
Direito da identificação digital
Por sua vez, o advogado e professor de Direito Civil da UFRGS, Fabiano Menke, diz que a pessoa deve ter o direito de poder apagar os dados se mudar de ideia e cita o exemplo dos alemães.
— Na Alemanha, quiseram garantir que aqueles que fornecem os dados da íris tenham o direito depois de apagar esse dado. Isso é uma coisa muito importante na proteção de dados — pondera.
Menke resume qual seria o verdadeiro objetivo dessa captação da íris das pessoas:
— É prover uma identidade digital das pessoas para que elas não se confundam com máquinas. Em um mundo cada vez mais robotizado e com inteligência artificial, isso seria a identificação das pessoas para que se tenha certeza de que se está lidando com uma pessoa e não uma máquina do outro lado.
Conforme o docente, aquele que coleta os dados precisa ter o consentimento de quem fornece e a questão da venda dos dados ainda necessita ser melhor definida pelas autoridades responsáveis por gerir essa prática.
— Mesmo que tenha essa disposição financeira, em algum momento, o titular pode revogar este consentimento. Se vai ter de novo uma consequência financeira, de devolução, é uma coisa a ser vista — analisa.
Para Menke, algumas complexidades técnicas sobre o tema ainda não são tão transparentes.
— Onde fica armazenada a íris da pessoa? — questiona o professor, acrescentando: — Eles (empresa encarregada do processo) alegam que ficaria armazenada no próprio smartphone da pessoa, que eles não teriam uma nuvem ou servidores de controle.
Isso seria a identificação das pessoas para que se tenha certeza de que se está lidando com uma pessoa e não uma máquina do outro lado
FABIANO MENKE
Na opinião do professor, o que é declarado pelas empresas nos tratamentos de dados pessoais e o que efetivamente elas fazem é um dos desafios para quem tem a tarefa de controlar.
— Isso se resolve por exames técnicos das autoridades que vão querer saber e ver se isso que está declarado corresponde a efetiva implementação da empresa — pensa. — É algo ainda muito incipiente na avaliação das autoridades de proteção de dados do Brasil e no mundo afora — conclui.
Nota da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD)
Em razão das recentes notícias sobre coleta de dados biométricos, pela empresa Tools for Humanity - TFH, que é responsável pela fabricação da câmera avançada (Orb), utilizada para a coleta de dados da íris, da face e dos olhos dos titulares, com o objetivo de desenvolver “sistema de verificação de condição de humana única”, conhecido como World ID, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) esclarece:
Em 11 de novembro de 2024, a Coordenação-Geral de Fiscalização da Autoridade Nacional de Proteção de Dados instaurou o processo de fiscalização nº 00261.006742/2024-53 em face da empresa para investigar o tratamento de dados biométricos de usuários no contexto do projeto World ID.
Os dados pessoais biométricos, tais como a palma da mão, as digitais dos dedos, a retina ou a íris dos olhos, o formato da face, a voz e a maneira de andar constituem dados pessoais sensíveis. Em razão dos riscos mais elevados que o tratamento desse tipo de dado pessoal pode oferecer, o legislador conferiu a eles regime de proteção mais rigoroso, limitando as hipóteses legais que autorizam o seu tratamento.
No âmbito do Processo de Fiscalização, a Coordenação-Geral de Fiscalização solicitou à TFH que prestasse esclarecimentos quanto aos seguintes aspectos do tratamento de dados pessoais:
- o contexto em que ocorrem as atividades de tratamento;
- os aspectos materiais das operações de tratamento;
- a hipótese legal que fundamenta o tratamento de dados;
- a transparência do tratamento de dados pessoais;
- o exercício de direitos pelos titulares de dados pessoais;
- a avaliação de eventuais consequências do tratamento de dados pessoais em relação aos direitos à privacidade e à proteção de dados dos titulares;
- o tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes; e
- as medidas de segurança da informação e de proteção de dados pessoais existentes.
A Coordenação-Geral de Fiscalização solicitou, ainda, o Registro de Operações de Tratamento de Dados Pessoais e o Relatório de Impacto à Proteção de Dados Pessoais.
A Tools for Humanity encaminhou os documentos e as informações requeridas. Atualmente, o processo encontra-se em fase de análise da documentação apresentada e o seu andamento pode ser acompanhado por qualquer interessado, por meio do módulo de pesquisa pública da ANPD, localizado no link :: Sistema Eletrônico de Informações - Pesquisa Pública ::