Sobre o caixa da padaria e confeitaria Milú, no bairro Sarandi, uma plaquinha de plástico chama a atenção. No centro, estão empilhadas imagens de seis notas de valores entre 0,50 centavos e 20 unidades. Apesar da aparência enganar, elas não são de reais, mas do Justo, a primeira moeda social de Porto Alegre.
A padaria, administrada por Josué Cesar Dandar Rossini, 63 anos, foi o primeiro estabelecimento a integrar a rede de circulação da moeda administrada pelo Banco Comunitário Justa Troca, que se estendia a cerca de 30 estabelecimentos antes da enchente.
Lastreada no real, ela pode ser usada para pagar produtos e serviços na região de atuação do banco na Vila Nossa Senhora Aparecida. Alguns estabelecimentos chegam a oferecer descontos para o pagamento na moeda local. Assim, o dinheiro da comunidade permanece na região e estimula o desenvolvimento.
Josué tem na ponta da língua o porquê de aderir à iniciativa, lá em 2016, enquanto ela ainda era só uma ideia:
— Sempre achei que nossa comunidade precisava de união e o Justo veio a calhar, porque o dinheiro fica aqui. As pessoas usam ele para comprar aqui na padaria, depois compro ali no açougue e o dinheiro fica aqui.
A explicação do comerciante resume o objetivo dos bancos comunitários e moedas sociais que há pelo menos nove anos atuam em comunidades periféricas da Capital.
Além de promoverem o desenvolvimento econômico de seus locais de atuação, eles têm sido centros de solidariedade e união de moradores de regiões de baixa renda por melhoria da qualidade de vida e de oportunidades.
Inspiração
Em Porto Alegre, há quatro bancos comunitários desenvolvidos com metodologia semelhante ao Justa Troca. Um dos mais antigos é o Banco Comunitário Cascata, no bairro homônimo, também criado em 2016. O banco, porém, funciona somente a partir de trocas e a moeda é lastreada em produtos, não no real.
Em 2023, foram criados os bancos da Asa Branca, no Sarandi, e o banco Colina, no bairro Agronomia. Todos eles integram a Rede Brasileira de Bancos Comunitários. Seu funcionamento segue a experiência precursora do Banco Palmas, criado em 1998, no Ceará.
Nos casos da Capital, também, sua implementação foi acompanhada pelo Núcleo de Gestão Alternativa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pela Unisol, uma central de cooperativas e empreendimentos solidários.
Nesse modelo, os bancos não têm donos. Eles são administrados por uma associação de moradores que define a política de crédito e administra os recursos disponíveis.
Por isso, outro braço importante da atuação dessas entidades é a organização de cursos de qualificação profissional. Neste mês, por exemplo, a Associação Comunitária Nossa Vila Aparecida (Ancovi), que gere o Justa Troca, já ofereceu um de cuidador de idosos. Nesta semana, será a vez do curso de tingimento natural.
Crédito barato e fácil
A moeda social é apenas uma face de atuação dos bancos comunitários pelo país. Outro pilar é a oferta de pequenos empréstimos de até R$ 1 mil, chamados de microcrédito, que, aqui, é oferecido apenas pelo Justa Troca. Normalmente, os recursos são ofertados para reformas menores ou serviços.
Professora de Administração da UFRGS e pesquisadora do tema, Ana Mercedes Sarria Icaza ressalta a importância desse pilar para o aumento de oportunidades nas comunidades.
— Muitas vezes (quem precisa do microcrédito) são mulheres que trabalham de forma autônoma e que não têm muitas chances no sistema bancário tradicional. Nos bancos comunitários elas têm esse incentivo para a produção local — considera.
A profissional da beleza Viviane Moraes Brescovit, 44, é uma das beneficiadas por essa iniciativa. Proprietária de um salão de beleza na região, ela conta que fez seu primeiro empréstimo no final do ano passado e usou o dinheiro para comprar insumos para seu trabalho.
— Eu tinha que investir em produtos e esse dinheiro me ajudou a comprar algumas coisas que estavam me faltando — diz a manicure.
Ela avalia que a vantagem do empréstimo no Justa Troca é o juro acessível e a facilidade de contratação. O crédito é operado em duas linhas. Em Justos, sem cobrança de juros, e em Real, com um juro de 2%.
Incentivo
Uma das fundadoras do Justa Troca, Nelsa Nespolo trabalha há 30 anos com economia solidária. Ela preside a Unisol no Estado e ajuda no desenvolvimento de novos bancos. Segundo ela, os empréstimos são uma forma de motivar as pessoas a se organizarem economicamente, justamente por serem feitos com base na confiança.
— Quando alguém vem fazer um empréstimo, a gente não consulta se a pessoa está devendo. Ela só tem que trazer dois vizinhos que digam que ela é boa pagadora. Eles não são avalistas, mas é uma forma de comprometer com o pagamento — explica.
Até hoje, o Justa Troca fez mais de 330 empréstimos a partir de recursos oriundos de doações de duas entidades ligadas a organizações sindicais europeias. A ONG Nexus, da Itália, e a Cerai, da Espanha.
Balanço do método
Ana Mercedes, da UFRGS, porém, considera que essas iniciativas enfrentam desafios importantes como a falta de um marco regulatório que guie sua implementação. No Congresso, há alguns projetos de lei que tentam regularizar seu funcionamento, mas ainda em discussão.
Enquanto isso, os bancos se baseiam em uma nota jurídica do Banco Central, elaborada em 2011. O texto diz que as moedas sociais não podem ser entendidas como dinheiro e não competem com o real. As moedas sociais são entendidas como um "instrumento de desenvolvimento local e de inclusão social".
Ademais, os fundos necessários para operar o microcrédito e fazer a moeda circular são escassos.
— Os bancos comunitários não podem captar poupança, como os bancos tradicionais, então eles dependem de doações a fundo perdido para conseguirem funcionar — esclarece Ana.
A pesquisadora também avalia que é difícil medir o impacto que o desenvolvimento desses bancos teve em suas comunidades por se tratar de experiências ainda incipientes. Mesmo assim, ela enxerga benefícios:
— Só a criação da moeda e o fato de as pessoas começarem a se preocupar com a circulação local já tem um impacto, principalmente simbólico. O contato com os comércios também é importante para saber quais são as necessidades daquela comunidade. É um autoconhecimento da própria comunidade.
Ao mesmo tempo, Nelsa lembra que o senso de coletividade e solidariedade em um território não nasce de um hora para outra. É um trabalho que exige colaboração e integração. No caso do Justa troca, ela já vê resultados.
— É como se a comunidade dissesse: essa aqui é a nossa moeda e ela é só nossa, para circular aqui dentro. Então, não acontece disputa de um com o outro. Todos tentam fortalecer todo mundo, tem espaço para todo mundo poder crescer — define.
*Produção: Guilherme Freling