Alegria, ansiedade e gratidão. Esses são os sentimentos que preenchem as vidas de Jarbas, 47 anos, e Mikael Mielke de Bitencourt, 34, desde o último 15 de setembro. Na ocasião, receberam a notícia que representa a realização de um sonho. “Depois de tanta espera, o grande dia chegou: o positivo mais esperado do ano. Parabéns, papais!”, dizia um trecho do bilhete escrito pela amiga Jéssica Konig, que carrega em seu ventre a primeira filha do casal.
O vídeo desse momento é marcado pela emoção do trio que, no início deste ano, encaminhou o processo para autorização do procedimento de cessão temporária de útero — popularmente conhecido como barriga solidária. Permitida no Brasil a partir de uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), essa prática é uma alternativa para mulheres com problemas de saúde que impeçam a gravidez, para pessoas solteiras ou para indivíduos em uniões homoafetivas (leia mais no final da reportagem). A iniciativa do casal de contar sua história também passa pela divulgação da prática, desconhecida por eles até pouco tempo atrás.
Natural de Porto Alegre, Jarbas conta que a vontade de ser pai surgiu há cerca de cinco anos — ele e Mikael estão juntos há 15, mas oficializaram a união, com uma grande festa no Litoral Norte, onde moram, em Imbé, somente em abril de 2022.
— Eu sou mais pé no chão e o Mika já é mais avoado. Eu tenho sempre medo do lado financeiro, confesso, então a gente precisou se estruturar, dar um passo de cada vez. E, do nosso casamento para cá, a gente entendeu que estava na hora e começou com esse processo — afirma o gestor regional de vendas, acrescentando que, no ano passado, tiveram uma tentativa de adoção frustrada, que só aumentou o desejo de terem um filho.
Mãe de duas crianças, uma menina de sete e um menino de seis anos, que são afilhadas do casal, Jéssica, 31, relata que ficou comovida com a situação pela qual amigos de longa data estavam passando.
— Eu sou mãe e sou louca pelos meus filhos, então fiquei com aquilo na cabeça. E aí eu disse: “eu tenho o que vocês precisam, já tenho meus dois filhos e não tenho planos de ter mais, então vou emprestar a barriga para vocês”. Eu já tinha ligado para a clínica, eles só precisavam marcar uma entrevista para entender como funcionava — comenta.
A autorização do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul (Cremers), que é necessária quando não há parentesco consanguíneo entre os envolvidos no processo, foi concedida somente em agosto. O procedimento de fertilização in vitro foi realizado em 5 de setembro, em uma clínica privada, utilizando um embrião gerado a partir da junção de um óvulo doado pela irmã de Mikael com o material genético de Jarbas.
Jéssica engravidou na primeira tentativa, o que não é muito comum, e o resultado positivo foi informado aos papais 10 dias depois. Jarbas se emociona ao relembrar o momento:
— Parecia que tinha saído uma carreta de cima de mim, porque tínhamos vencido uma etapa. A partir daquilo, era só alegria. E já se passaram 19 semanas, a Antonella está saudável, os exames estão todos maravilhosos, a Jéssica também. Foi pura emoção, já me senti pai, a vontade era sair para a rua e gritar.
Mikael concorda que o positivo gerou um alívio e uma emoção muito grandes. Também destaca que sempre quis ser pai e que tem uma relação bem forte com os afilhados, em especial com a menina.
— Agora vou poder ter a minha filhinha. Estou só contando os minutos para tê-la nos braços. A Antonella é a realização do maior sonho da minha vida — enfatiza o fotógrafo.
A menina deve nascer em maio de 2024 e o chá de fraldas está marcado para março. Mas o casal já está com tudo pronto — quarto, roupas e demais itens — para receber a pequena.
— Ver a felicidade deles é surreal. É um sentimento que não tem como dimensionar ou explicar, diferente de tudo que a gente já viveu. Foi uma emoção desde o início, o procedimento, o positivo, todo o processo. E poder realizar o sonho de duas pessoas é muito bom — salienta Jéssica.
Casal quer divulgar a possibilidade
Na véspera de Natal, Jarbas e Mikael divulgaram nas redes sociais a novidade sobre a chegada de Antonella. Além de compartilhar a alegria que está vivendo, o casal acha importante divulgar informações acerca da possibilidade de realizar o sonho de ter um filho com a ajuda de uma barriga solidária — até Jéssica se oferecer para o procedimento, nenhum dos dois sabia que era uma alternativa viável no território brasileiro.
O trio também conta que o todo processo envolve acompanhamento psicológico. Uma preocupação que Jéssica tinha, por exemplo, era como explicar para os seusfilhos que a criança que está gestando não seria irmã deles.
— Nós explicamos e foi muito legal que eles tiveram capacidade e maturidade para entender. Hoje, se perguntam para eles, dizem que estou gerando o bebê dos dindos. Então, não afeta o meu psicológico, nem o deles — comenta a amiga.
Jarbas afirma ainda que ele e Mikael estão inscritos no sistema de adoção e, futuramente, pretendem adotar um menino para ter um casal de filhos.
Como funciona a barriga solidária no Brasil
De acordo com o Conselho Federal de Medicina (CFM), a cessão temporária de útero — também chamada de gravidez de substituição ou barriga solidária — é uma possibilidade para mulheres com problemas de saúde que impeçam ou contraindiquem a gravidez, para pessoas solteiras ou para indivíduos em uniões homoafetivas. O procedimento se torna viável por meio da utilização de técnicas de reprodução assistida.
Stephanie Prade, advogada especialista em direito médico, explica que não há uma lei específica sobre barriga solidária, mas a primeira resolução do CFM que abordou o assunto foi publicada em 2015. Desde então, novas normativas foram lançadas, atualizando as regras relacionadas ao procedimento.
Uma das determinações prevê que a cedente temporária deve ter alguma relação familiar com um dos futuros pais (parentesco consanguíneo até o quarto grau), podendo ser mãe, tia, avó, irmã, sobrinha ou prima, afirma Stephanie. Essa mulher também deve ter ao menos um filho vivo. Quando não houver parentesco, o Conselho Regional de Medicina do Estado onde residirem os futuros pais deve autorizar a realização da barriga solidária.
— A barriga solidária também não pode ter caráter lucrativo ou comercial, mas isso não significa que os futuros pais não devam custear as despesas médicas da gestante. Já em relação às clínicas de reprodução assistida, uma série de pré-requisitos devem ser cumpridos para que o procedimento possa acontecer. É um processo complexo, mas necessário — esclarece.
A advogada detalha que é exigida a apresentação de termo de consentimento livre e esclarecido assinado pelos envolvidos, relatório médico e psicológico, termo de compromisso entre futuros pais e cedente do útero, entre outros. Ressalta ainda que as regras são as mesmas para casais heterossexuais e homoafetivos, e que, para iniciar o procedimento, primeiro é preciso recorrer a um médico especialista para entender se a cedente possui alguma condição que contraindique ou que impeça a gestação:
— O segundo passo é tentar achar algum parente disposto a realizar a gestação de substituição, o que pode ser bem difícil, ou outra pessoa, com autorização do CRM a partir de um procedimento interno. A partir daí, contratos e termos de compromisso devem ser realizados com a orientação de um advogado de confiança do paciente para que haja segurança jurídica para ambas as partes.
Conforme João Michelon, médico ginecologista e conselheiro do Cremers, a cessão temporária de útero vem se tornando cada vez mais comum e, no território gaúcho, há uma demanda crescente. O órgão recebe, mensalmente, uma ou duas solicitações de autorização para casos em que não há parentesco entre os envolvidos — quando a cedente é da família de um dos futuros pais, o procedimento não passa pela entidade.
O processo para a autorização não tende a ser demorado, afirma Michelon, mas é preciso que a clínica encaminhe toda a documentação necessária, prevista pela resolução do CFM.
— Se a clínica encaminhar toda a documentação, é muito rápido. Chega ao Cremers e é convocada uma reunião da Câmara Técnica de Reprodução Assistida, que analisa os termos de consentimento e os atestados de bom estado físico e mental. Se estiver tudo certo, leva uns dois meses. Mas pode haver a solicitação demais documentos, aí volta para a clínica, que faz os ajustes e retorna, daí se faz o julgamento novamente. Normalmente, o resultado tende a ser positivo — finaliza o conselheiro.