Por Alexandre Ruszczyk
Biólogo, doutor em Ecologia
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso analisou a economia escravagista em sua tese de doutorado e escreveu que os africanos eram trazidos para o sul do Brasil por “um tal de Bastos”. Trata-se do meu tataravô, que emigrou para o Brasil no início do século 19. Descendemos de José Custodio de Bastos por parte de sua bisneta, Graciana Silveira, nossa avó materna, filha de Delfina Bastos, neta de José Custodio. As informações que seguem foram transmitidas oralmente em nossa família ao longo das gerações. Revelam fatos desconhecidos sobre o comércio escravagista em Porto Alegre e a resistência dos africanos. Esclarecem também o significado das letras “CB” gravadas em artefatos relacionados à escravidão no sul do Brasil. Significam “Custodio Bastos”. Espero que este relato, muito resumido devido à própria natureza de herança oral, estimule a realização de pesquisas que lancem luz sobre o período da escravidão no Rio Grande do Sul. A historiografia moderna chama de micro-história o relato pessoal ou familiar, o qual tem valor comparável ao de documentos ou provas físicas para o melhor conhecimento do passado.
José Custodio de Bastos, cidadão português, possuía dois barcos mercantes de madeira movidos por velas em sociedade com seu irmão. Em certo momento, por motivos que desconhecemos, venderam suas posses em Portugal e decidiram emigrar para o Brasil. Em seguida, compraram ainda em Portugal 10 léguas do litoral do Rio Grande do Sul, tendo como centro a Barra do Rio Tramandaí. A compra foi feita de autoridades do Império do Brasil que estavam em Portugal representando o governo da província gaúcha. Na compra, estava incluído o valor de um porto marítimo de madeira no local, atual Barra da Lagoa. Quando aqui chegaram, avistaram cômoros de areia onde deveria existir um porto. Foram enganados! Sem demora, seguiram para o Sul, até Rio Grande, e tomaram o rumo de Porto Alegre. Após atracarem, alugaram galpões no porto para estocar sua carga e compraram o conjunto de ilhas em frente à cidade por um preço irrisório. Construíram seu porto particular e sua base de operações na Ilha da Pintada. A maioria dos descendentes continuou a morar nas ilhas, inclusive nossa avó materna, que lá permaneceu até 1928. Com o tempo, essas terras foram sendo divididas entre os herdeiros e vendidas para terceiros. Hoje, da lembrança do nosso tataravô nas ilhas do Guaíba resta, pelo que nós sabemos, somente o nome “Arroio do Custódio”.
Até sua chegada e fixação na Ilha da Pintada, nosso antepassado importava e comercializava, principalmente, ferramentas agrícolas e de uso geral, sementes, artigos de mesa, cozinha e vestuário. Ele já havia trazido essas mercadorias para o porto de Porto Alegre em viagens anteriores. Por isso, não teve dificuldade em seguir de Tramandaí para Rio Grande quando não encontrou o porto prometido. Ele sabia como era lucrativo o comércio escravagista e que muitos morriam nos porões insalubres dos navios. Mudou de atividade e passou a transportar cativos africanos da África para Porto Alegre. Talvez mais por interesse no lucro do que por humanidade, seus barcos traziam os cativos na parte superior, em gaiolas ao ar livre, tais quais passarinhos.
Numa ocasião, no desembarque dos cativos, um grupo expressivo conseguiu fugir, abrindo caminho na vegetação fechada e espinhosa que cobre áreas alagadas dessas ilhas. Eles se juntaram a outro contingente que progressivamente havia fugido de desembarques anteriores e de outros locais. A vegetação quase impenetrável nas áreas alagadas era um refúgio seguro. Esse grupo formou uma comunidade, que era apoiada por outros africanos ainda cativos e que trabalhavam na região. Algum tempo depois, membros do grupo foragido incendiaram, à noite, um dos barcos de Custodio, que, impactado com essa ação, com a fuga recente e com a crescente violência dos refugiados, decidiu sair da Ilha da Pintada. Vendeu o barco restante e, junto a suas economias, comprou gado e terras na região de Morretes e em outros locais do Rio Grande do Sul. Passou a se dedicar à pecuária. Até pouco tempo, algumas fazendas gaúchas tinham o “CB” gravado em suas porteiras e utensílios.
Não poderia terminar este relato sem reconhecer a contribuição que os africanos nos legaram e que considero a mais importante trazida para o Brasil por povos de outras regiões: os traços marcantes com os quais somos reconhecidos mundialmente. A espontaneidade no falar e agir, a intimidade imediata com estranhos, o sorriso fácil, a alegria de cantar e dançar são, em grande parte, heranças africanas. Sem essa influência, seríamos um pouco mais “tristes”, mais “amargos”, como nossos vizinhos na América, onde a presença africana foi menor ou ausente. Acredito que a chegada dos africanos é o evento mais importante da História do Brasil até hoje, por suas consequências culturais, sociais, econômicas e de antropologia física na formação do povo brasileiro.