
Seu Araújo já era carcereiro experiente quando o conheci no Carandiru, em 1989. Tinha o rimo da fala e a sabedoria de preto velho dos terreiros de candomblé. Foi amizade à primeira vista.
No início, fiquei em dúvida se o ar simplório lhe era espontâneo ou cultivado com requinte profissional, para esconder a sagacidade com que observava o ambiente e o interlocutor.
Morava no Tatuapé, num terreno dividido com as casinhas dos irmãos. A dele ficava nos fundos, acessível por uma escada ao lado de um canteiro com avencas, antúrios e folhagens coloridas. Na parede, vasos de samambaias e costelas de Adão cuidadas com o carinho de quem começara a vida como jardineiro.
Todos os anos, seu Araújo convidava os colegas de trabalho para uma festa junina em casa. Incrível caber tanta gente em espaço tão exíguo. Num dos anos, não pude ir. Na segunda-feira, encontrei-o no pátio da cadeia. Com brilho nos olhos, descreveu a reunião que havia terminado às duas da madrugada. Perguntei se tinha ficado feliz:
— Doutor, sabendo levar a vida é uma festa.
Provações não lhe haviam faltado, entretanto. Aos 35 anos, dois de seus meninos mais novos morreram de pneumonia, quase ao mesmo tempo; um tinha seis anos e o outro, três. Um mês depois, o filho mais velho, que acabara de completar 12 anos, brincava com uma bola no quintal quando caiu desacordado. Faleceu naquela madrugada.
"Probleminha" no Pavilhão 9
No dia 2 de outubro de 1992, chegou na cadeia às 7h50min para assumir a chefia do Pavilhão 8, que recebia os condenados reincidentes. Ao passar pela portaria, o colega recomendou que ficasse esperto: havia um "probleminha" no 9.
O probleminha deu origem à maior tragédia da história dos presídios brasileiros. Uma briga entre duas quadrilhas provocou uma rebelião que incendiou colchões e levantou barricadas.
No 8, seu Araújo reuniu os 12 funcionários que vigiavam desarmados os 1.756 presos. Decidiram ser mais prudente recolher os homens dispersos pelo campo de futebol. Caso os reincidentes aderissem, o motim se espalharia pelo presídio inteiro, como havia acontecido em outra ocasião.
Foi quando Cidão, bandido de longa folha corrida, subiu num banquinho: 'Vamos fazer como ele diz. Sou piolho de cadeia, nunca vi esse homem faltar com a palavra'
Com calma, foram explicando nas rodinhas, que seria mais sensato irem para o pátio interno, porque a tropa de choque já entrara no presídio. Quando ouviram os primeiros estampidos, pediram que todos subissem para as galerias.
Soltos nos andares, os presos desentocaram as facas, não para a operação suicida de agredir os policiais que invadem com cães e metralhadoras, mas para fazer frente a ataques de inimigos que porventura se aproveitem da confusão.
Facas quase encostadas em seu corpo
Seu Araújo concluiu que a única alternativa seria trancar os homens, para deixar claro que não tinham aderido à rebelião.
Coube a ele subir para o quinto andar, o mais problemático da Detenção. Lá, encontrou os presos encapuzados com centenas de facas nas mãos. Não foi fácil convencê-los de que seria melhor irem para a tranca, enquanto ele e os colegas montariam guarda junto ao portão que separava o 8 do 9, para impedir que a PM invadisse o 8, para acertar contas com os marginais que tantos dissabores lhes causavam nas ruas:
— Vocês vão fugir e abandonar nós aqui dentro. Vamos morrer feito frango no poleiro.
Cercado pelas facas quase encostadas em seu corpo, ele insistia que podiam confiar, que os funcionários também correriam risco de morte se a PM entrasse. Todos falavam ao mesmo tempo, não havia lideranças com quem discutir.
Foi quando Cidão, bandido de longa folha corrida, subiu num banquinho:
— Vamos fazer como ele diz. Sou piolho de cadeia, nunca vi esse homem faltar com a palavra.
Sangue puxado com rodo
Trancaram todos e deixaram as chaves com o pessoal da faxina de cada andar, os líderes do pavilhão. A cada hora os carcereiros avisavam de cela em cela que, apesar do tiroteio ao lado, reinava a calma no 8.
Por volta das 20h, as balas silenciaram. Quando deu 23h, seu Araújo e o colega Osmar foram até a rua:
— Era uma confusão de PM e viatura levando os corpos para o IML. Falei pro Osmar: já imaginou se tivessem invadido o 8?
Tomaram duas cachaças no bar em frente. Na manhã seguinte, voltaram para ajudar na limpeza. Era dia de eleição.
— Nunca imaginei ver sangue puxado com rodo — comentou.
Dias atrás, recebi um telefonema do filho de seu Araújo: o pai tinha acabado de falecer, aos 82 anos. Hemorragia cerebral, a mesma morte súbita que levara o filho de 12 anos enquanto jogava bola no quintal.