Sobre a mesa enorme, repousava uma relíquia delicada, quase centenária, que, tal qual uma turista recém-chegada, aos poucos se adaptava às intempéries de Pelotas. Assim como os seres vivos, as pinturas também são suscetíveis aos humores do clima. Na fria e úmida tarde de 26 de agosto, o óleo sobre tela Alegoria do Sentido e Espírito da República Farroupilha (1926), de Hélios Seelinger (1878-1965), livre do bastidor e da moldura que o sustentaram, ocupava quase a totalidade da superfície do móvel construído especialmente para acolhê-lo em uma das salas do Museu do Doce.
Medindo 3,8 metros de altura por 5,7 metros de comprimento (a mesa tem 4,2 metros por 6 metros), Alegoria estava, naquele ponto inicial da jornada de restauração, “de bruços” – o observador enxergava apenas o verso, uma trama de linho escurecida que aos poucos clareava com a aplicação de pó de borracha. Havia 10 dias, o tecido passava, naturalmente, pelo processo de planificação – quando as ondulações vão se desfazendo –, depois de mais de sete anos enrolado, longe dos olhos do público, aguardando reparos no Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs), em Porto Alegre.
Alegoria do Sentido e Espírito da República Farroupilha e Fuga de Anita Garibaldi a Cavalo (1918), também um óleo sobre tela, de Dakir Parreiras (1894-1967), adornaram, até meados da década de 1950, o Palácio Piratini. Quando o italiano Aldo Locatelli (1915-1962) foi convidado a colorir os salões da sede do governo estadual, quadros lá expostos se destinaram a outros espaços – por conta da temática, Alegoria e Anita chegaram então ao Museu Histórico Farroupilha, na cidade de Piratini, uma das capitais da revolução mais famosa das memórias rio-grandenses.
O evidente valor artístico e histórico das duas produções não as livrou de uma trajetória de rigores. Descomunal, Alegoria não cabia no prédio do museu piratinense e, por pelo menos quatro décadas, recostou-se em uma parede, inclinada. Acomodou-se melhor quando a levaram para a prefeitura do município, onde ficou exposta reta, na vertical. No caso de Anita, o estado da camada pictórica (tinta) já é, por si só, um testemunho de sua condição atual: a ação do tempo foi marcante, provocando uma série de craquelês (fissuras). Será, das duas empreitadas, a mais árdua.
Desde meados do mês passado, as telas estão aos cuidados da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), que assinou um termo de cooperação técnica e científica com a Secretaria Estadual da Cultura (Sedac) – enquanto a pasta fornece os materiais necessários para o restauro, a instituição de ensino se responsabiliza pela mão de obra especializada, pela segurança e pelo local onde a tarefa está sendo realizada. De acordo com a Sedac, não houve, nesta gestão, repasse de dinheiro para o projeto, iniciado em 2011 – de lá para cá, foram recuperadas, pelo Núcleo de Restauro e Conservação do Margs, outras seis obras do museu de Piratini, e faltavam as duas que agora se encontram em Pelotas.
Os materiais, comprados anteriormente, custariam, em valores corrigidos, cerca de R$ 27 mil. O projeto de extensão Laboratório Aberto – Conservação e Restauração de Bens Culturais, coordenado pela professora Andréa Bachettini, conta com restauradores orientando 12 alunos de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis do Instituto de Ciências Humanas da UFPel, além da participação de um estudante da Museologia, que agenda e recebe os grupos – todo o processo pode ser acompanhado pelos visitantes –, e de um do Jornalismo, que documenta e divulga a iniciativa.
De segunda a sexta-feira, graduandos e profissionais compõem times e se revezam nas tarefas ao redor da grande mesa. Alegoria desembarcou no Museu do Doce muito bem embalada em um tubo de PVC, depois da viagem de mais de 250 quilômetros desde a Capital. Uma finíssima película de papel japonês recobriu toda a face dianteira da tela para proteger a camada pictórica durante o trajeto e enquanto a turma de restauradores não começava a operar sobre ela. A tela foi desenrolada em cima da mesa, sobre a qual se colocou uma plataforma mais alta, com rodas que se movimentam sobre trilhos, para que se alcance o centro da obra de arte – assim, o restaurador fica suspenso sobre a pintura, de onde pode, por exemplo, sugar com um aspirador de pó os resquícios escurecidos da borracha (do tipo mais comum, de apagar lápis) que limpou as entranhas do tecido.
Espírito de revolução
A Revolução Farroupilha (1835-1845) teve início, entre outros motivos, pela insatisfação dos produtores gaúchos com os altos impostos imperiais que incidiam sobre o charque fabricado na província, que o deixava muito menos competitivo do que a carne dos países vizinhos. Couro e erva-mate também se encareciam com a pesada taxação. Faltavam recursos para investimentos em infraestrutura.
— Passamos por um período em que a monarquia exigia tudo, os altos impostos cobrados bancavam o luxo da corte, e isso foi criando um descontentamento. Não tinha retorno também. O Rio Grande do Sul não tinha escolas públicas, não tinha estradas em condições. Estávamos abandonados — recordou a historiadora Francieli Domingues, diretora do Museu Histórico Farroupilha de Piratini.
Alegoria do Sentido e Espírito da República Farroupilha exibe uma multidão de homens, mulheres e crianças avançando, em um contexto de batalha. Sobre eles, esmaecidas, como em um segundo plano – ou em uma dimensão espiritual –, aparecem as figuras de homens armados e a cavalo. As bandeiras do Brasil e do Rio Grande do Sul estão presentes.
– Esta tela tem um sentido mais metafórico, voltado para o advento da revolução. Não tem personagens relevantes da revolução, tem o povo marchando ao encontro desses ideais: igualdade entre todos os povos, liberdade, valorização do nosso povo. Fala que ainda continuamos levando esses ideais à frente, que temos interesse de rememorar nosso povo. Acredito que o autor quis mostrar um pouco da influência do movimento para a formação da República brasileira. Há o sentido de espírito de revolução, que povoa o imaginário gaúcho e o de muitos brasileiros que se importam, que se identificam com a coragem de tomar para si a formação de um novo estado – discorreu Francieli.
Fuga de Anita Garibaldi a Cavalo (2,1 metros x 1,7 metros) apresenta Anita Garibaldi, moça simples que se tornou esposa de Giuseppe Garibaldi, escapando com o filho primogênito do casal, Menotti, nos braços. Ainda no delicado período do puerpério, ela fugiu do acampamento onde estava, invadido pelas forças imperiais, e se abrigou na mata, até que o amado a encontrasse, dias depois.
– A tela demonstra, mais uma vez, a abnegação dessa mulher enquanto ser humano, enquanto mãe, enquanto revolucionária. O semblante dela é de desespero porque ela queria salvar a vida do filho. A dela, nem tanto – comenta a historiadora.
Um trabalho de detetive
Alegoria é maior, mas Anita, bastante deteriorada, dará trabalho à turma mobilizada no Museu do Doce (endereço escolhido por conta do pé direito alto das salas e pela possibilidade de acompanhamento in loco pelos interessados). Quando há escasso ou nenhum registro das intervenções ao longo do tempo, é como se o restaurador estivesse diante de um mistério a ser desvendado: que materiais foram utilizados? Qual foi a técnica empregada pelo artista? Em que cores? Quando? Qual o estado dos craquelês? A depender da espessura da pincelada do artista, a camada pode levar anos ou até mesmo décadas para que seque por completo. O gaúcho Iberê Camargo (1914-1994), expoente do cenário artístico brasileiro do século 20, pintava com porções grossas, às vezes de relevo superior a um centímetro.
Essas duas obras oferecem uma representação altamente significativa da revolução feita por grandes pintores. São dotadas de um tremendo valor histórico e artístico, têm um caráter épico. E eles são artistas da então capital do Brasil olhando para a ponta do Sul.
FRANCISCO DALCOL
Diretor-curador do Margs
Com o auxílio de uma lâmpada de wood (luz negra), pode-se localizar as áreas de intervenção prévia – os materiais têm fluorescências diferentes, e repinturas anteriores podem ficar mais escuras. Profissionais de laboratórios parceiros do projeto de restauro serão fundamentais para ajudar a determinar os elementos químicos de amostras de tinta. A partir dessa análise, além de ser possível estimar uma data para as repinturas, os restauradores conseguem utilizar os mesmos pigmentos dos originais – branco de zinco, branco de chumbo ou branco de titânio, por exemplo.
Os muitos pares de mãos, em luvas de nitrilo ou látex para dupla proteção – a pele se resguarda de fungos, e a tela não absorve a gordura do corpo humano –, envolvem-se em uma missão que exige paciência, meticulosidade e suavidade. A restauração requer calma e leveza.
– Cuidado com a Anita! – pediu a restauradora Keli Scolari a um jovem que transportava uma escada pela sala e passou ao lado do quadro apoiado na parede.
No dia em que a reportagem de GaúchaZH passou por Pelotas, diversos aprendizes se dedicavam a retirar os restos da substância colante que fixou o chamado reforço de borda, aplicação em tecido que permitirá, mais adiante, que a tela seja “esticada” para ser fixada ao bastidor (armação de madeira que segura o suporte têxtil da pintura, encoberto pelo tecido da tela e pela moldura). Comumente, o reforço de borda é do mesmo tecido da tela, o que não ocorreu no caso de Alegoria, que tinha na borda um pano resistente e duro próprio da fabricação de cortinas. Os pedaços de tecido e a cola foram removidos manualmente, com o auxílio de compressas de álcool e bisturis cirúrgicos – são os mesmos de procedimentos médicos, pelo corte afiado e preciso – na raspagem dos resíduos. De tão rijos, os resquícios do produto adesivo acabavam por quebrar as lâminas dos instrumentos. Havia também enxertos espalhados por toda a extensão traseira da tela, que também saíram.
A Revolução Farroupilha é o maior formador da identidade do povo gaúcho. A partir daquele momento, passamos a ver que éramos diferentes, que tínhamos costumes específicos, até por causa da geografia, da condição de fronteira. Isso nos atribui valores culturais, ideais que permanecem até hoje.
FRANCIELI DOMINGUES
Diretora do Museu Histórico Farroupilha de Piratini
– Onde tinha um rasgo, tinha um enxerto. As pessoas foram remendando as deteriorações causadas pelo tempo com enxertos inadequados, algo bem caseiro mesmo – constatou Andréa.
Um microscópio óptico permite que o restaurador avalie se toda a cola já foi retirada. O mesmo aparelho possibilitou a identificação do linho empregado na tela. Para os novos enxertos e o reforço de borda, comprou-se um linho semelhante, cru e puro, na Casa do Restaurador, em São Paulo – a obstinação pela precisão é tanta que se tenta obter a trama mais parecida possível, inclusive no que diz respeito ao número de fios.
Quando o trabalho no verso de Alegoria for concluído, a tela será tensionada no novo bastidor. A estrutura de madeira está sendo planejada por um engenheiro, de acordo com publicações internacionais, para que não envergue devido ao tamanho. Feito isso, a pintura será posicionada de pé.
– Aí o público vai poder apreciar a obra, e começa o tratamento na camada pictórica – antecipou Andréa.
Será retirado, então, o papel japonês que recobre a grande tela – com o auxílio de um swab (palito com algodão) umedecido e uma pinça. Caso o restaurador, sem querer, acabe por descolar, além do papel japonês, um fragmento da camada pictórica, é preciso retroceder, “devolvendo” a tinta à tela, permitindo que o pequeno extrato em vermelho, azul ou verde se reacomode no lugar. Não ficam fragmentos de cola ou do papel protetor sobre a tinta.
Repintar as cores perdidas não é tarefa exclusiva para artistas. Mais do que talento e requinte estético, são necessárias paciência e precisão. Para a reintegração da camada pictórica, será utilizada a técnica do pontilhismo. Com um pincel de ponta diminuta, tamanho 00, o mais fino de todos, é aplicado, sobre a tela, um pontinho ao lado do outro. Por vezes, os pontos se sobrepõem. Se necessário, o restaurador recorre a uma lupa presa à cabeça. Boa iluminação no ambiente é essencial: natural e artificial. A luz artificial, sozinha, pode alterar a percepção das cores – o que torna a reintegração pictórica um trabalho diurno. Luz solar direta também não é recomendado, uma vez que a incidência repetida pode queimar as fibras do tecido e desbotar cores.
– É que nem a nossa pele, que precisa de filtro solar – comparou Andréa.
Vários profissionais podem atuar simultaneamente, em zonas distintas, na fase do pontilhismo. Para alcançar as regiões mais altas da tela de Hélios Seelinger, deverá ser utilizado um andaime.
Historiadora é “a Anita do museu”
Andréa conhece a emoção dos estudantes selecionados para participar do projeto. Quando estudava Restauração de Pintura em Minas Gerais, a agora professora teve a oportunidade de participar da restauração de obras de Dakir Parreiras e de seu pai, Antônio Parreiras. Aluno do segundo semestre, Airton Carpinter Moreira, 65 anos, em seu quarto curso superior, dedicava-se ao preparo do linho vindo de São Paulo quando foi fotografado por ZH. Ensinou que, para um restaurador, é fundamental pesquisar sobre a obra em que se está operando a intervenção.
– É muito prazeroso, apesar do medo que dá, algumas vezes – admitiu Airton. – Por isso não fazemos nada sem orientação.
Natural de Salvador, Isis Fófano Gama, 30 anos, “uma baiana que não sente frio”, segundo a professora Andréa, transformará o registro da experiência de restauração de Anita em seu trabalho de conclusão de curso.
– Está sendo um privilégio. Entendo que, para a história do Estado, essas telas têm uma importância grande. Vocês têm até um dia dedicado à Revolução Farroupilha – destacou Isis.
O valor histórico das duas produções é inegável. Francieli, diretora do museu de Piratini, inaugurado em 1953 e com acervo em torno de 400 peças (obras de arte, armaria, documentos, objetos pessoais dos revolucionários e da vida cotidiana nos galpões), é fascinada pela revolução desde a infância. A historiadora de 25 anos lembra quando, por volta dos seis, foi levada ao museu por um tio. Encantada pela imagem de Anita no cavalo, perguntou:
– Quem é essa mulher?
Contaram-lhe que se tratava de uma heroína e falaram sobre a guerra que originara um país, a República Rio-Grandense. A partir de então, a menina pedia, todo final de semana, que alguém a acompanhasse até o museu. Ao passar nas imediações de algum prédio antigo, alegava que precisava tomar água só para poder entrar e dar uma espiadinha no interior da construção. Francieli tomava notas e, no início da adolescência, já era proprietária de uma considerável coleção de livros. Aos 16, tornou-se guia turística na cidade que, para ela, “respira história”.
Está sendo um privilégio. Entendo que, para a história do Estado, essas telas têm uma importância grande. Vocês têm até um dia dedicado à Revolução Farroupilha.
ISIS FÓFANO GAMA
Estudante baiana do curso de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis da UFPEl
A escolha da faculdade foi uma consequência óbvia – sua monografia abordou a importância da mulher no movimento farroupilha. Durante anos, Francieli encarnou a personagem Anita Garibaldi no teatro. Muitos ainda a chamam de Anita, e não de Francieli – outras variações para seu nome são “a Anita do museu” ou “a Anita do Piratini”. No início de 2019, a historiadora acabou se tornando diretora da instituição pela qual é aficionada desde a infância.
– A Revolução Farroupilha é o maior formador da identidade do povo gaúcho. A partir daquele momento, passamos a ver que éramos diferentes, que tínhamos costumes específicos, até por causa da geografia, da condição de fronteira. Isso nos atribui valores culturais, ideais que permanecem até hoje – comentou Francieli. – Tenho muito orgulho de ser piratinense. Como bairrista que sou, reconheço o quão importante foi a minha cidade. Ela é um baú de tesouros – acrescentou a diretora do museu, que tem média de 500 visitantes por mês, número que dispara para 4 mil em setembro.
Francieli se emocionou ao antever o dia do retorno dos quadros, transcorrido tanto tempo:
– Ficou uma lacuna, não conseguimos preencher o espaço. Essas obras têm quase o sobrenome do museu. As pessoas esperam ansiosas, eu espero ansiosa. Trazê-las de volta para casa é dizer que o museu está lutando pelo seu lugar. O museu é do povo.
É muito gratificante. Trabalhamos em obras que as pessoas acham que estão totalmente perdidas. O processo é uma alegria. É um prazer poder devolver à sociedade esse trabalho tão bonito de artistas que retrataram nossas façanhas como gaúchos.
ANDRÉA BACHETTINI
Professora da UFPel
Alegoria e Anita também são reconhecidas como peças de arte. Diretor-curador do Margs, Francisco Dalcol, doutor em Teoria, Crítica e História da Arte pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), explicou que Seelinger e Parreiras são chamados de acadêmicos por terem uma formação atrelada aos padrões da Academia Imperial de Belas Artes, fundada no Rio de Janeiro, no século 19. No portfólio desses autores, regidos por modelos e regras bem definidos, destacam-se cenas históricas e episódios solenes.
– Essas duas obras oferecem uma representação altamente significativa da revolução feita por grandes pintores. São dotadas de um tremendo valor histórico e artístico, têm um caráter épico. E eles são artistas da então capital do Brasil olhando para a ponta do Sul – refletiu Dalcol.
A restauração dos quadros tem previsão de duração de um ano. Antes da recolocação das molduras, que também serão renovadas, a última etapa prevê a aplicação de uma camada de verniz. O objetivo é devolver Alegoria do Sentido e Espírito da República Farroupilha e Fuga de Anita Garibaldi a Cavalo ao Museu Histórico Farroupilha na semana da celebração de 20 de setembro de 2020, depois de expostas, por alguns dias, em Pelotas. A esta altura, será preciso dar um passinho para trás – finda a exibição no Museu do Doce, Alegoria será retirada da moldura e do bastidor para ser devidamente acondicionada para o trajeto até Piratini. Anita, por ser menor, viajará com o bastidor. Na chegada ao Museu Histórico, serão recolocadas em suas molduras outra vez.
– É muito gratificante. Trabalhamos em obras que as pessoas acham que estão totalmente perdidas. O processo é uma alegria. É um prazer poder devolver à sociedade esse trabalho tão bonito de artistas que retrataram nossas façanhas como gaúchos – resumiu Andréa.