Percorrer a Avenida João Carlos Machado e a Rua Antônio de Siqueira, na área central de Iraí, no extremo norte do Estado, é voltar ao passado. Imponentes prédios do início do século 20, alguns abandonados, sobressaem. Três hotéis no estilo art decó, construídos em madeira na década de 1920 e depois refeitos em alvenaria, juntam-se à edificação arredondada do balneário hidromineral inaugurado em 1935. Os quatro recebem turistas do Brasil, da Argentina e do Uruguai, mas nenhum deles desperta mais emoção nos 7,9 mil habitantes do que um imóvel destruído há 25 anos, no coração da cidade.
Símbolo dos tempos áureos do município – que, entre as décadas de 1940 e 1960, chegou a ter 40 mil moradores –, o Cassino Guarani resiste na memória e nas rodas de conversa. É como se as roletas continuassem girando, as mesas de jogos seguissem repletas de fichas e o próximo baile com a Orquestra Jazz Guanabara já estivesse agendado.
Iraí dividiu-se entre antes e depois do Guarani. Nas ruas, há quem ainda culpe o ex-presidente da República Eurico Gaspar Dutra pelo fim da economia local – em 1946, ele decretou o encerramento dos cassinos no Brasil. Outros suspiram ao evocar a época em que o prefeito chegava a pedir para os turistas não visitarem a cidade por falta de leitos livres.
O cassino surgiu como forma de agradecimento do empresário Eurico Nunes da Silva, de Santo Ângelo, pela cura dos problemas na coluna, tratados nas águas termais de Iraí. Ele se mudou para a cidade e, com apoio da mulher, Eulália, a Lalá, aval da prefeitura e financiamentos a longo prazo, ergueu em seis meses o tesouro da região. Inaugurado em 20 de fevereiro de 1941, o cassino ampliou a rede hoteleira para oito hotéis, quatro pousadas e 12 pensões e fez o Ministério da Aeronáutica rasgar uma pista de pouso de 1,2 mil metros de extensão, que mais tarde se tornou um aeroporto com linhas aéreas regulares da Varig e da Real Aerovias para todo o Brasil.
O prédio em formato de navio, instalado na esquina da Dr. Pereira Filho com a Antônio de Siqueira, abrigava barbearia, salão de baile, restaurante e uma ampla sala de jogos. Visitantes chegavam de diferentes partes do país e da América do Sul, atraídos pelo luxo – o conjunto de luzes em formato de estrela do salão principal foi adquirido na França, por exemplo. Deputados, secretários do Estado e ministros eram assíduos. Nem mesmo as estradas de terra vermelha ou a falta de uma ponte impediam a chegada – carros eram atravessados de balsa pelo Rio da Várzea. Os únicos proibidos de frequentarem a jogatina eram os bancários, os comerciários e os funcionários públicos da cidade. Dizem que Eurico (morto em 1969) temia que as famílias fossem prejudicadas pelo vício.
Tradicionalmente às 18h, a Pereira Filho era fechada para o trânsito e nela colocadas 30 mesas e cadeiras para os frequentadores. A creche, a escola local, a casa das freiras e até o hospital municipal eram ocupados para pernoite de visitantes. Pertencente à terceira geração de donos do Hotel Balneário, Leda Maria Teston Garcia, 90 anos, recorda da época em que a família saía das próprias dependências para abrir mais espaço aos hóspedes.
— A espera era tanta, que a minha mãe deixava um colchão na frente do quarto que vagaria primeiro. O cliente seguinte já dormia ali, esperando a saída do outro. Para ter mais lugares, ela botava os cinco filhos, eu também, no subsolo. Nós dormíamos em cima dos pelegos porque não havia mais lugar. Todos os hotéis ficavam lotadíssimos — rememora.
Para ter em casa uma recordação, o marido de Leda adquiriu uma das mesas de carteado e as fichas em madrepérola. Nos finais de semana, filhos e netos reúnem-se para o jogo favorito dela, o bacará.
Depois do encerramento das atividades do cassino, em 30 de abril de 1946, outros clandestinos foram abertos em Iraí, mas logo fechados pela polícia. O número de turistas despencou, mas a suntuosa construção seguiu movimentando a cidade devido às reuniões dançantes mais frequentadas do norte do RS, nas quartas e nos sábados. Jovens solteiros e casais retornavam à região em busca da boa música da Orquestra Guanabara. Os profundos olhos azuis de Leda se enchem de lágrimas quando ela silencia recordando dos inúmeros carnavais celebrados no prédio e das noites que só terminavam por volta das 4h, quando Lalá começava a ligar as luzes francesas – era o sinal para os mais festeiros deixarem o salão.
Hoje já falecida, Lalá esperou até 1989, quando tinha 77 anos, por uma lei que reabrisse os cassinos. Enfim desistiu e vendeu o prédio com todos os móveis. Foi morar numa casa em frente, onde reproduziu nas grades da entrada do pátio o estilo do Guarani. Lalá manteve o mesmo espírito de quando circulava entre os jogadores. Não dormia antes da meia-noite e ficava na mesa da sala – uma das tantas retiradas do cassino – jogando pontinho com os amigos. Durante o dia, passava as horas contemplando o fim do outro lado da rua.
— Não foi só Lalá que viu no cassino a esperança de dias melhores para a cidade. O fato de ter potencializado a economia municipal e até mesmo regional dotou o empreendimento de uma dimensão redentora jamais substituída por outra iniciativa — aponta Sirlei Rossoni, autora do livro O Cassino Guarani – Histórias, Memórias e Personagens.
O que restou do cassino foi vendido ou doado pelos novos proprietários. Houve uma movimentação na cidade para impedir sua destruição, mas sem sucesso na Justiça. O prédio começou a ser demolido no início dos anos de 1990. Em seu lugar, surgiu uma edificação mista de tijolos à vista, onde há comércio, escritórios e apartamentos residenciais. A outra parte do cassino, onde ficava a barbearia, virou uma loja de móveis.
O fim e o recomeço
O fechamento do cassino acabou encurtando a vida do aeroporto de Iraí. O local teve 30 hectares definidos pelo Ministério da Aeronáutica em 1943. Oito anos depois, o então secretário estadual de Obras, Leonel Brizola, aterrissou na cidade em um monomotor para assegurar a construção do aeroporto com recursos da União. O cassino já havia fechado, mas a movimentação em Iraí permanecia em alta. Em 23 de dezembro de 1956, autoridades municipais, estaduais e federais acompanharam a chegada do primeiro avião de passageiros, o PP-VAZ, da Varig, na pista de 1,2 mil metros.
A partir dos anos 1980, com a queda brusca de turistas, o aeroporto foi perdendo as linhas regulares até receber apenas voos particulares. Em 1992, a Funai identificou o trecho como parte dos 278 hectares pertencentes à área indígena caingangue de Iraí. Uma comissão de moradores tentou suspender a demarcação, mas o aeroporto foi definitivamente fechado e casas foram construídas nas duas margens da antiga pista.
— Quando recebemos a demarcação, éramos 45 famílias morando ao lado do Rio do Mel, no Centro. Hoje, somos 200 famílias. O problema é que mais de 150 hectares são área de preservação, e ainda tem a pista. Se vamos dividir a terra entre as famílias, não sobra espaço para plantarmos. Só conseguimos viver de artesanato — diz o cacique Jadir Jacinto, 48 anos, que também é vereador na cidade.
Jacinto lembra de quando tinha 10 anos e vendia no Centro as peças de palha feitas pela família. O movimento era intenso no verão e no inverno.
— Nossa cidade parou no tempo. Os hotéis e o balneário são os mesmos de quando eu tinha 10 anos. Quem quer passar as férias quer conforto e novidade — comenta.
Em 1992, com a possibilidade de reabertura dos jogos no Brasil, Iraí liderou o movimento Cassino Já, com apoio dos municípios vizinhos. Carros carregavam adesivos e bandeiras, e milhares de cartas escritas pelos moradores e pelos vereadores foram enviadas a Brasília, pedindo a ajuda dos deputados. Jamais houve consenso sobre a questão.
No início dos anos 2000, o Hotel Iraí, erguido em 1921 e fechado em 1986, ganhou novo dono e passou por reformas. Havia a intenção de revigorar o turismo, que dependia das águas termais do balneário público Osvaldo Cruz. Não passou de empolgação. Hoje, restam quatro hotéis e o balneário segue como maior atração, recebendo principalmente idosos em busca das propriedades medicinais dos banhos que curaram o fundador do cassino Guarani.
— Ficar lembrando do passado pode ser bom e ruim — diz o prefeito Antônio Vilson Bernardes (PP). — Bom por conta do turismo, mas ruim porque a população não superou o trauma do fim do cassino e acomodou-se à espera da chegada de um novo Eurico.
Bernardes lamenta que, no passado, a mobilização não tenha impedido o desmonte do cassino – “poderia ser usado para fins turísticos”. A ideia do prefeito é conscientizar a população e os atuais proprietários dos prédios mais antigos sobre a importância da preservação histórica. Ao mesmo tempo, para mudar a realidade econômica, a prefeitura vem investindo em seminários e reuniões com os comerciantes. A meta é fomentar iniciativas e atrair investidores.
A primeira das ações ocorreu em janeiro, quando o balneário e suas piscinas externas foram terceirizados. Bernardes diz que o prédio precisava de reforma completa e que “a morosidade do serviço público” impediria o início das obras em 2018.
— Mesmo não tendo dinheiro em caixa, precisávamos criar novos produtos, novas atrações. Uma cidade que depende do turismo não pode viver apenas do passado — afirma.
O prefeito destaca também a inauguração, neste mês, do quinto hotel da cidade, o AJ Termas, que havia ficado abandonado por 31 anos. Um empresário comprometeu-se a investir R$ 5,1 milhões na restauração e conclusão do hotel, gerar no mínimo 10 empregos diretos e arrecadação de impostos. Serão 65 apartamentos.
Nos próximos meses, uma tirolesa sobre o Rio do Mel pretende atrair os mais jovens. O mesmo curso de água deve sediar a modalidade boia cross – descida em boias individuais – por cerca de dois quilômetros. Bernardes quer atrair a família inteira, além da terceira idade:
— Reconheço que ninguém ficará mais do que dois dias numa cidade onde não há nada para fazer além de tomar banho em água termal. Precisamos diversificar. A partir do novo hotel, espero que novos empreendedores coloquem os olhos sobre Iraí. Precisamos diversifica sem jamais esquecermos a nossa história.
Romance que nasceu no baile
Casados há 48 anos, o advogado Jayme José Locatelli, 78, e a técnica contábil e professora Rosa Maria Mussolini Locatelli, 68, moradores de Frederico Westphalen, iniciaram o romance no salão de baile do Guarani, em 1968. Estudante de Direito, Jayme tinha agenda certa nos finais de semana: deixava Frederico, distante 30 quilômetros, rumo a Iraí, onde, além do cassino, havia um cinema. Era lá que admirava à distância Rosa, eleita a mais linda prenda de Iraí, dançando com os amigos.
Cansado de esperar pelos olhares da moça, Jayme tomou coragem e a abordou na entrada do salão, numa noite em que ela tentava se esconder de outro pretendente.
— Já tínhamos nos cruzado algumas vezes, mas sem qualquer aproximação. Ela vinha apressada e eu a parei na porta. Perguntei onde ia — começa Jayme.
— Eu disse que estava fugindo de um baixinho que queria dançar comigo — lembra Rosa.
— Então, prontamente respondi: “Aqui tem um altinho para você dançar!”. O início foi ali.