Por Maria Cristina Vasconcellos
Diretora científica da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA)
Partindo de situações vividas não só na prática psicanalítica, mas como sujeitos inseridos na cultura, ficamos inquietos diante das modificações que as formas sociais têm sofrido. Os recursos tecnológicos trazem novas possibilidades que nos desacomodam, o que impacta na nossa subjetividade de maneiras diversas. Uma dessas formas que vêm mudando é a falta de clareza entre os limites do que é o público e o privado.
Quatro bilhões de pessoas estão conectadas à internet, segundo relatórios publicados em 2018. O Brasil é o terceiro país em que se passa mais horas na rede, e em segundo no quesito horas gastas em redes sociais. Concomitante à potencialidade que a internet nos oferece, diminuindo distâncias e oferecendo uma abertura permanente para o mundo, também nosso cotidiano – durante muito tempo restrito ao espaço de convívio mais próximo – pode se espalhar nas redes sociais, explicitando essa falta de definição dos espaços público e privado.
A existência de limites é uma necessidade na constituição da capacidade psíquica. O espaço privado é necessário desde o nascimento. Na cultura ocidental, espera-se que os pais ofereçam esse espaço protetor – filtrando estímulos excessivos com os quais o bebê ainda não consegue lidar –, fundamental para sua sobrevivência psíquica. Assim, o convívio com o público vai sendo progressivo. Nesse contexto, conforme Freud, uma das primeiras polaridades que o bebê faz para dar conta do excesso de estímulos é a distinção entre o eu e o não eu. Ao fazer isso, ele demarca um espaço mental que possibilita preservar o que sente como prazer e expelir para o espaço do não eu o que percebe como desprazer. A partir desses momentos iniciais, e auxiliado por quem o cuida, o bebê desenvolve capacidades mais complexas, que lhe permitirão entender suas emoções e o mundo ao seu redor.
Para que esse desenvolvimento ocorra de forma favorável, ainda segundo Freud, é fundamental que o bebê seja reconhecido como um sujeito, e não como uma mera extensão dos desejos e necessidades de quem o cuida. Isso requer que os pais tenham em si a noção de limites, a inscrição da cultura. Para convivermos em conjunto, a ordem cultural impõe a todos nós restrições que precisam ser respeitadas.
E como fica isso quando vivemos em uma cultura em que pelo menos um de seus vértices tem como característica a ausência de limites? A ideia de que o espaço virtual é constituído de imagens, de uma realidade diferente, pode promover dificuldades no reconhecimento do espaço e da realidade do outro. Mesmo em nossas casas, o convívio com o público ocorre sem cerimônia, quando trocamos mensagens no celular ou no computador. A porta concreta não deixa mais de fora o convívio público, pois a janela para o virtual está sempre aberta. Onde fica, então, a fronteira entre o público e o privado? Se o adulto não tem essa fronteira demarcada com clareza, como poderá transmitir esses limites para o bebê, necessários a sua constituição como sujeito? Com dificuldades em sua constituição, como esse sujeito em desenvolvimento enfrentará as crises da vida?
O que vemos nas redes sociais não corresponde necessariamente ao que é real. Poderíamos dizer que, muitas vezes, são produções caseiras de cenários imaginários. Isso diz respeito à qualidade das relações, ao reconhecimento da alteridade, pois facilmente podemos pensar que estamos diante apenas de uma imagem e não lidando com um outro que precisa ser respeitado em sua privacidade, o que permite espalhar fotos ou filmes sem compromisso. De maneira mais abrangente, convivemos com o fato de estarmos sendo filmados permanentemente, em geral como medida protetora devido à violência, e não damos atenção a isso. Mas, nesse caso, qual é o limite? Há espaços que devem ser preservados sem câmeras, dentro de casa? No trabalho? Na escola?
Podemos pensar que isso implica apenas em criar regras para determinar esses espaços e tudo está resolvido, mas esse é um debate que vai além. Diz respeito à consideração por nós mesmos e pelo outro – necessidade que surge já nos momentos iniciais de vida, pois esta distinção entre o eu e o não eu é uma das primeiras que fazemos, e é fundamental para o desenvolvimento do aparelho psíquico. Remete ao desenvolvimento de um sentido ético, que permite que as relações sejam mais humanizadas e menos coisificadas.
O seminário
O Sujeito Contemporâneo Entre o Público e o Privado
Painel comemorativo aos 55 anos da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA) e aos 25 anos da Revista de Psicanálise. No dia 26, às 19h, no Teatro Unisinos (Av. Nilo Peçanha, 1.600). Entrada gratuita. Com os psicanalistas Cesar Brito e Cláudio Eizirik, o historiador e colunista de GaúchaZH Francisco Marshall, o biólogo José Roberto Goldim e o filósofo Felipe Gonçalves Silva. Inscrições pelo e-mail comunicacao@sppa.org.br.