Se você pudesse preservar a memória de um entre os tantos objetos de sua vida, qual seria? Talvez essa pergunta custe tempo, talvez a resposta já esteja na ponta da língua. A certeza é uma: esse objeto evocaria situações, pessoas e, sobretudo, sentimentos.
Muito provavelmente, você perceberia que ele não tem grande valor material. Seria uma daquelas tralhas que ninguém quer, nem de graça. Mas da qual você, se ainda não a tivesse perdido pelos anos e mudanças por aí - ufa -, não conseguiria se desfazer assim tão facilmente. É algo que poderia ser totalmente banal, mas que tem uma importância inestimável, porque faz parte e conta a história da sua vida.
Se o texto se enrolou até aqui, foi com um propósito: para dar tempo de você pensar no objeto que assume essa posição de destaque na sua trajetória. Identificou? Então, foi para preservá-lo que alunos e professores da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) criaram o Museu das Coisas Banais, acervo virtual que, em seu primeiro ano, soma mais de 200 imagens e histórias de pertences investidos de afeto.
Na página do museu no Facebook, no perfil no Instagram e nas postagens reunidas no site do projeto, estão coisas de quem tem saudade do avô, guarda carinho pelos dias da infância, não quer se esquecer do conturbado momento em que os pais se separaram, e também de gente que se apegou a objetos recentes, como um pinguim de pelúcia dado ao filho pequeno.
- A maioria dos museus trabalha com a perspectiva de proteger os objetos por seu valor histórico, artístico e documental. Mas e aqueles aparentemente sem importância, para onde vão? Eles acompanham a vida de uma pessoa. Ela se vai, eles ficam. Objetos têm esse poder de transcender uma vida. E a gente entende que, sim, eles devem ser preservados pela memória que têm - afirma Juliana Serres, professora de Museologia na UFPel e coordenadora do museu.
Para Maria Eunice de Souza Maciel, professora de Antropologia da UFRGS, visitantes do museu, ao acessarem a página e encontrarem imagens de objetos da vida cotidiana de outros, podem rememorar vivências próprias ou imaginar as de pessoas próximas.
- As coisas banais são banais entre aspas. O valor de um museu como esse está por reunir imagens que presentificam vivências. E, nesse sentido, as coisas do dia a dia têm uma grande capacidade: a de mobilizar memórias. Nós somos o que construímos ao longo da vida, somos feitos de lembranças. E os objetos fazem parte disso - acredita a pesquisadora.
Momentos de tristeza ou alegria intensos são fases das quais dificilmente - ainda que de forma subjetiva - queremos nos esquecer. Segundo Ilana Andretta, professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Unisinos, guardamos as boas épocas pelo sentimento acolhedor. Já os maus períodos ficam na lembrança como forma de defesa, ou até que sejam processados ou superados. Ilana diz:
- Esse medo das pessoas, de se esquecerem do que viveram, explica a necessidade de preservar um objeto, no sentido de marcar para sempre uma memória, associando-a a alguma coisa material. Não deixa de ser uma forma de se reconhecer.
Doações podem ser anônimas
Para colocar o seu entre os objetos do Museu das Coisas Banais, basta acessar o site do inventário e preencher um breve formulário, anexar uma foto da "coisa banal" e contar por que ela tem valor na sua vida. O item passará pela curadoria e será objeto de discussão entre estudantes de Museologia, Antropologia, Design, Serviço Social, Computação e Cinema, áreas que fazem parte do projeto da universidade.
Não se preocupe se achar sua história muito íntima. Os "doadores" têm a opção de permanecerem anônimos. O que importa, como afirma um dos criadores, o aluno de Museologia Rafael Chaves, é:
- Valorizar a experiência das pessoas e fazer com que pensem nos objetos como portadores de memória, fundadores de identidade.
GALERIA AFETIVA
Conheça a história de alguns dos objetos que estão no Museu das Coisas Banais
O DVD do pai
"Ele (meu pai) tinha uma banda de rock, e eu, desde pequena, participava dos show que ele fazia. Foi após um desses eventos, pouco tempo depois de ele ter tido alta do hospital, que fomos até a loja e compramos esse DVD do AC/DC. Isso me marcou muito. Tenho várias memórias ligadas a esse objeto. Na vez seguinte em que ele foi internado, oito meses depois, ele morreu. Foi só pensando nele, nesse objeto, que pude perceber o quanto falava a mim e ao meu pai."
Ana Paula Rosa, 22 anos, estudante de Ciências Exatas na Unipampa, em Caçapava do Sul
O umbigo e o cofre
"Este é o umbigo da minha primogênita. (...) Guardei como lembrança, assim como o dos meus outros dois filhos. Na cidade onde morávamos, no interior do Rio Grande do Sul, diziam que se enterrasse o umbigo na frente da porteira de uma fazenda ela seria estancieira. Mas eu quis guardar. Também diziam que se um rato roesse o umbigo seco da criança ela se tornaria uma ladra. Está guardado há 35 anos no cofre de casa."
L.M.B., de Capão do Leão
O avô e o mar
"Meu avô, Arthur Constantino, nascido em 1898, visitou o mar pela primeira vez em 1948, na Praia Grande, em Santos (SP). Como recordação, comprou esta concha e a manteve com ele até sua morte, quando foi herdada por minha mãe."
Marli Gavioli, de São Paulo
O carrinho da infância
"Na infância, brinquei muito de boneca. Sempre tive muito cuidado com meus brinquedos, tanto que conservo vários até hoje, em bom estado, principalmente ursinhos de pelúcia. Esse carrinho, eu tenho desde que tinha três anos. Os passeios das bonecas eram sempre no carrinho. As bonecas foram substituídas, mas o carrinho permaneceu."
Assim escreveu a professora de teatro Fernanda Saldanha, 27 anos. Quando doou a imagem e a história, o objeto estava muito presente em sua vida. O carrinho fez parte de sua pesquisa de conclusão de curso e, colocado na sala de casa, ajudou a estudante a enfrentar a reta final da graduação.
- Eu estava pirando fazendo o TCC, mas aquele carrinho ali me transmitia uma calma. É muito legal a gente compartilhar as nossas memórias, os objetos que têm importância sentimental para cada um. Acaba despertando lembranças também para outras pessoas - diz Fernanda.