
“Quando se está a lutar contra o tempo, quando se sabe que, a cada dia, o corpo se deteriora até ao dia em que deixará de nos obedecer, quando o telefone começa a tocar demasiadas vezes para avisar que fulano foi internado ou que sicrano faleceu, temos duas opções: ficar paralisados pelo medo e pela angústia de a nossa viagem estar prestes a acabar, ou fazer tudo que nos der na telha.”
O trecho acima integra uma das reflexões sobre finitude da vida feitas por Helena, a idosa de 80 anos protagonista do romance E se Eu Morrer Amanhã?, da autora portuguesa Filipa Fonseca Silva. Abordando de uma forma leve e descontraída temas relacionados à sexualidade na terceira idade, a obra foi trazida ao Brasil pela TAG Experiências Literárias, em parceria com a editora Dublinense.
Trata-se do sexto romance de Filipa, mas o primeiro publicado no Brasil. A autora de 45 anos é fundadora do Clube das Mulheres Escritoras e nunca havia escrito sobre sexualidade na terceira idade. Nesta entrevista, destaca a importância de colocar mulheres idosas como protagonistas em histórias, do autoconhecimento feminino e de falar abertamente sobre sexo, independentemente da idade.
Confira a entrevista:
Como surgiu a ideia de criar a Helena?
Eu estava escrevendo outro livro, que acabou saindo no ano passado, uma coisa totalmente diferente, mas estava meio presa. Fui almoçar na casa da minha mãe e ela me contou de uma amiga, na França, que fazia companhia a uma senhora de 85 anos.
Um dia decidiram arrumar umas gavetas, foram ao quarto e ela descobriu, debaixo da cama da senhora, uma caixa cheia de brinquedos sexuais, com muita variedade: óleo de massagem, preservativos, roupas, tudo.
Quando ouvi aquela história, disse que precisava falar com essa amiga. Liguei e pedi para me contar tudo. Ela disse que era uma senhora superativa, que andava de jeans, sempre maquiada, que estava sempre saindo e sempre no telefone com os amigos. Eu fiquei completamente fascinada e pensei: “Onde estão essas mulheres? Tenho certeza de que há outras mulheres assim, mas ninguém fala delas”.
Foi aí que eu decidi criar a minha Helena, criar uma mulher que fosse uma inspiração, uma forma diferente de olhar para as mulheres mais velhas e de apresentá-las na literatura, porque normalmente não há muitas mulheres velhas protagonistas, são sempre personagens secundárias, a mãe ou a avó. E quando existe uma protagonista, é sempre uma história triste, em que ela já está demente ou está triste.
É uma forma de olhar para a velhice sempre muito escura e eu achei que esta era uma oportunidade única de trazer para a literatura uma personagem luminosa e uma versão da velhice que existe. Pode não ser tão frequente como outras, porque os idosos muitas vezes têm doenças e outros fatores que podem fazer com que não tenham uma vida assim tão ativa como a minha Helena.
Mas essas pessoas existem, por isso, é importante retratá-las na literatura e, deste modo, abrir aos leitores esta perspectiva de um envelhecimento feliz.

Você já tinha escrito algo sobre a sexualidade na terceira idade?
Não. Eu tive que fazer muita pesquisa, porque eu também queria perceber até que ponto isso era um caso raro. Então, fui à procura de estudos sobre sexualidade depois dos 70 anos e descobri que existem poucos estudos, mas os que existem mostram que, felizmente, há muita gente que continua a ter uma vida sexual ativa, que há muitas versões da sexualidade, que não tem que ser a mesma sexualidade vivida com 20 anos ou 30 anos, que pode ser uma sexualidade mais de intimidade do que, por exemplo, de penetração, mas que existe e, sobretudo, existe a vontade.
Eu também descobri através desses estudos que o clitóris é o único órgão do corpo humano que nunca se deteriora, ao contrário de outros órgãos. Portanto, é normal que possa continuar a ser usado e estimulado, mas ninguém fala sobre isso. Pelo contrário, há um peso sobre o assunto que torna quase uma vergonha falar dele. No meu livro, eu trago isso em uma das amigas da Helena, que diz que ela não tem idade para isso e que não pode falar sobre sexo.
E eu comecei também a estudar outros preconceitos que existem em relação às pessoas mais velhas, como essa ideia de que os mais velhos já não são úteis para a sociedade, essa ideia de que só é válido para a sociedade quem é útil, quem faz e, portanto, se o idoso já não faz, já não interessa. Então, o idoso é posto de lado, é desconsiderado e, para muitas pessoas, são quase que um peso, algo que os próprios filhos já não sabem o que fazer.
No livro, você traz esse olhar dos filhos da Helena. A filha Luisa, por exemplo, desconfia todo o tempo que a mãe está demente.
Eu vivo agora em um bairro que tem uma população muito envelhecida e assisto, às vezes, a maneira condescendente como tratam os idosos. Outro dia vi uma senhora, que devia ser assistente social, com uma idosa, acho que estavam indo a uma consulta. Então, ela estava ajudando a senhora a sair do carro e começou a falar com a senhora como se fosse um bebê. Eu fiquei olhando e pensando: “Por que ela está falando com um adulto como se fosse um bebê?”
Aquela era uma mulher, não um bebê. Claro que se pode e se deve falar de uma forma carinhosa, como com qualquer ser humano, mas será que é necessário assim? Eu fiquei chocada e vejo isso muitas vezes, essa condescendência, e isso desumaniza as pessoas também. Faz com que o idoso se sinta realmente um peso e sinta que não vale a pena sair de casa, experimentar outras coisas.
Então, as pessoas começam a se autocensurar, a achar que não devem, sobretudo aqui em Portugal, que ainda temos uma sociedade muito conservadora.
Há muito esse peso da mulher que fica viúva, tem que se vestir de preto e acabou a vida, não pode mais nada. O homem pode ficar viúvo e pode se casar de novo, e se casar com uma mais nova, melhor, porque assim cuida dele até morrer. Quando é uma mulher, isso é um horror. Mas por que não?
Só se vive uma vez. Portanto, todas essas questões eu quis trazer neste livro, achei que era uma oportunidade única de falar sobre isso, sobre a maneira como nós olhamos para os idosos e sobre o quanto ainda temos para aprender com eles.
E essa é a principal mudança que eu gostaria que o meu livro também suscitasse. Nós temos tanto para aprender com os mais velhos e, mesmo que sejam as coisas antigas, são muito válidas e importantes: as tradições, as palavras que vão caindo em desuso.
Essas coisas são a nossa cultura e mesmo que os idosos não tenham escolaridade ou sejam de um tempo muito antigo e não saibam mexer em um telefone, por exemplo, eles têm outras coisas muito importantes para nos ensinar.
Conversar com idosos é incrível porque eles são a história, eles carregam com eles histórias de coisas que já não existem e nunca mais vão existir, eles são as últimas pessoas que têm essa sabedoria, esse conhecimento, e se nós não aproveitarmos isso, somos muito burros, temos que aproveitar tudo que eles têm para nos ensinar.
Você traz essa questão com a Mafalda, uma das netas dela. Achei bonita a interação delas e como a Mafalda defende a avó.
Sim, acho que muitas vezes a distância geracional ajuda a ter esse entendimento. É por isso que as crianças se dão tão bem com idosos, com os avós, porque há ali um distanciamento que às vezes é necessário, porque talvez os filhos não consigam olhar para os pais como pessoas, e o contrário também acontece, quando pais não conseguem olhar para os filhos como adultos.
Então, às vezes, é preciso essa distância de gerações para que realmente haja um olhar suficientemente lúcido para perceber e defender.
Acho que os jovens também têm esse papel de derrubar essa barreira, porque teoricamente os jovens têm uma mente um pouco mais aberta, estão mais livres de alguns preconceitos que nós, muitas vezes, vamos acumulando ao longo da vida. E acho que essa relação é muito bonita.
Eu tenho ainda as minhas avós vivas e sempre tive muita proximidade com elas, sempre gostei muito de conversar, e acho que é uma relação muito especial essa de avós e netos, é uma relação única. Também quis fazer um pouco essa homenagem às relações entre avós e netos.
A Helena tem diferentes amantes, e não quer namorar ninguém. Como foi construir essa personagem de quase 80 anos, que é livre para fazer o que bem entende?
Essa construção partiu da minha experiência por conviver com mulheres que eram como a Helena era até o marido morrer, ou seja, são essas as mulheres que eu conheci, foram essas as histórias que eu ouvi das minhas avós e das amigas das minhas avós. Aqui, nós tivemos também uma ditadura até muito tarde e tínhamos uma sociedade hiperconservadora em que as mulheres não tinham qualquer papel na sociedade, nem sequer podiam votar ou sair do país sem a autorização do marido.
E quase todas as histórias de vida que eu ouvi desta geração de mulheres que nasceu nos anos 1930 eram de mulheres que não sabiam nada de sexualidade. Elas casavam e nem sequer sabiam muito bem o que ia acontecer na noite de núpcias.
E as conversas que eu ouvia mesmo mais tarde, já nos anos 1980 ou 1990, dessas mulheres mais velhas para as mais novas eram sempre fruto dessa educação. Elas diziam: “Filha, tu tens que aguentar, ele é o teu marido”. Não interessava se o marido batia ou traía, tinha que aguentar. E isso sempre me revoltou muito, porque eu sou feminista desde que nasci.
Nós estamos falando de muitas décadas de opressão e de mulheres que foram criadas para servir e para aguentar. Então, eu achei que esta Helena, que quando jovem tinha tantos sonhos, como outras mulheres, que depois passaram 40 ou 50 anos subjugadas ao seu papel na sociedade, tinham que ser livres, sem querer namorar ninguém. A minha Helena tinha que ser a antítese das mulheres que ficam viúvas aos 62 anos e passam o resto da vida sozinha.
É interessante você trazer a descoberta dos brinquedos sexuais na terceira idade.
Não sei como é no Brasil, mas aqui em Portugal ninguém fala de brinquedos sexuais. Mesmo entre amigas, é raro alguém que tem, que experimentou. Não há muito essa conversa aqui, porque tudo é conotado como pornografia. Mas os brinquedos sexuais, na minha perspectiva, são muito úteis quer a pessoa tenha uma relação e possa usá-los entre o casal, quer a pessoa esteja sozinha. E, muitas vezes, para as pessoas que estão sozinhas é mesmo uma solução boa.
Mas as pessoas têm vergonha de entrar em uma sex shop e fazer perguntas. Então, também é preciso tornar isso normal e ter essa abertura para falar sobre o assunto, para as pessoas saberem que não há nenhum problema em ter um brinquedo. Há pessoas até que não têm mobilidade e talvez o brinquedo possa ser mais confortável do que usar outra coisa qualquer ou ter um parceiro. Quis trazer isso para desdramatizar um pouco isso de demonizar um vibrador, um sugador.
Cada um faz o que quer no seu quarto, as pessoas devem ser livres também para descobrir o que é que as faz felizes. Li muitos estudos e a coisa que eu acho mais triste é que existem mulheres que vão morrer sem nunca terem tido um orgasmo e achando que está tudo bem, que não é preciso, que esses orgasmos são um mito. Acho que é muito triste uma pessoa passar por este mundo sem se conhecer a ponto de descobrir o que lhe dá prazer.
Você cita o uso de medicamentos para ereção pelos parceiros da Helena em diferentes momentos. Acredita que seja uma forma de naturalizar essa questão?
Acho que é muito importante falar sobre esses temas exatamente para desmistificar, porque há pessoas que desistiram da sexualidade porque tiveram um episódio ou porque acham que já não há solução. E mesmo as mulheres não tendo o problema da ereção como os homens, elas têm outros problemas que podem tornar as relações dolorosas, incômodas, e tudo isso tem solução. Se as mulheres falassem mais sobre isso, saberiam.
É importante falar porque há várias maneiras de viver a sexualidade. A sexualidade não tem que ser um filme para adultos, há várias maneiras de viver a sexualidade e de se descobrir, até para pessoas que vão tendo perdas de mobilidade ou de audição ou de visão. Então, quis trazer esse realismo de “vamos falar sobre o assunto”.
O objetivo deste livro foi isso mesmo: lançar o tema e fazer com que as pessoas comecem a falar um pouco sobre isso, que fechem o livro e pensem que realmente podem fazer isso. Naturalizar o assunto mesmo entre pessoas da mesma idade, para amigas poderem falar sobre isso e perceberem que não são as únicas.
Eu recebi muito esse feedback de algumas pessoas mais velhas que leram o livro, que me agradeceram por falar sobre isso e se reconheceram na história e agora veem que é normal. Então, vamos normalizar essas coisas porque são normais. Tudo isso é normal e é preciso falarmos com naturalidade. Se as pessoas têm dúvidas, precisam perguntar aos seus médicos e procurar saber mais para poderem viver uma vida plena.
Além da sexualidade, você cita outras atividades da Helena, como aulas de ginástica, viagens e encontrar amigos. Foi uma preocupação sua abordar esses pontos?
Sim, porque para a Helena estar com aquela vivacidade e com aquela energia toda é porque é uma pessoa que não está em casa fechada, fazendo tricô e olhando para a janela triste. É uma pessoa que se mantém ativa e isso é muito importante. As pessoas mais velhas, talvez porque a sociedade as empurra um pouco para fora do espaço público, acham que não têm que estar em determinados lugares.
E acho que é importante também essa mensagem de que temos que nos manter ativos, temos que procurar o que nos faz felizes, seja na sexualidade, seja em qualquer área, temos que nos manter curiosos, porque a curiosidade é ótima para o nosso cérebro. O nosso cérebro se regenera com a curiosidade, quando aprendemos uma coisa nova, seja uma língua, pintura, cozinhar.