
Ainda que Flow: À Deriva tivesse conquistado o Globo de Ouro, concedido pela Associação de Imprensa Estrangeira em Hollywood, e sido o preferido junto aos críticos de Los Angeles, Nova York, Chicago, Boston e San Francisco, a vitória do filme da Letônia no Oscar de melhor animação foi uma das raras surpresas na 97ª edição da premiação. E seu triunfo, somado às últimas duas escolhas da Academia de Hollywood, pode ter acendido um alerta na Disney e na Pixar, estúdios que dominam a categoria.
Quem chegara como favorito à cerimônia deste domingo (2) no Dolby Theatre, em Los Angeles, era Robô Selvagem, após ter ganho o PGA Awards, da Associação dos Produtores dos EUA, o Critics Choice e nove troféus no Annie, o principal prêmio da animação na indústria estadunidense. Além disso, o filme disponível nas plataformas de aluguel digital somava mais indicações ao Oscar: concorria também aos troféus de melhor música original, composta por Kris Bowers, e melhor som. Flow, que segue em cartaz nos cinemas, competia em duas categorias — a outra era de longa internacional, vencida por Ainda Estou Aqui.
Os dois filmes têm semelhanças, ainda que guardem diferenças abissais.

Assinado por Gints Zilbalodis, Flow custou apenas US$ 4 milhões, foi feito ao longo de cinco anos e meio usando um software de animação gratuito, o Blender, e é o primeiro título da Letônia a ser indicado ao Oscar.
Robô Selvagem, com orçamento de US$ 78 milhões, é o 49º longa-metragem da DreamWorks, estúdio que começou com Formiguinhaz (1998), pertence à Universal e tem no currículo as franquias Shrek/Gato de Botas, Madagascar, Kung Fu Panda, Como Treinar seu Dragão e Trolls. Quem dirige é Chris Sanders, que concorreu ao Oscar por Lilo & Stitch (2002, com Dean DeBlois), Como Treinar seu Dragão (2010, em mais uma parceria com DeBlois) e Os Croods (2013, com Kirk DeMicco).
Os dois filmes são fábulas com animais que permitem leituras sociopolíticas.

A animação letã acompanha a luta por sobrevivência de um gato, um cachorro, uma capivara, um lêmure e uma ave de rapina durante uma enchente. Ou seja, a trama fala sobre tolerância, empatia e cooperação entre povos diferentes.
Adaptação de um sucesso da literatura infantil, publicado em 2016 pelo escritor e ilustrador estadunidense Peter Brown, Robô Selvagem tem como protagonista a unidade 7134 dos robôs multifuncionais ROZZUM, única sobrevivente de um naufrágio na costa de uma ilha desabitada por humanos. Lá, passa a interagir com personagens como Astuto, uma raposa, Bico-Vivo, um filhote de ganso órfão, uma gambá mãe e um bravo urso pardo. Por um lado, o filme acompanha a criação de vínculos afetivos, a formação de uma família não convencional, uma história de amor, sacrifício e gratidão. Por outro, mostra como a tecnologia pode e deve conviver harmoniosamente com a natureza, ensina que a gentileza é uma habilidade de sobrevivência e lembra o quanto somos dependentes uns dos outros, a despeito de diferenças — na vida em sociedade, cooperar é fundamental.

O triunfo de Flow no Oscar de animação deve provocar uma "conversa no vestiário" na Disney e no seu estúdio de animação digital, a Pixar. Pelo menos em relação às premiações, porque nas bilheterias seus últimos filmes foram muito bem, obrigado. Divertida Mente 2, que representava a Pixar entre os concorrentes, foi o campeão de bilheteria de 2024, com quase US$ 1,7 bilhão arrecadados. Ausente da lista de indicados, Moana 2, da Disney, ficou no terceiro lugar, com US$ 1 bilhão.
Desde que o Oscar de longa de animação foi instituído, em 2002, a Pixar já conquistou 11 vezes a estatueta dourada — é a maior vencedora. Na segunda colocação, aparece a Walt Disney Animation Studios, com quatro.
Mas 2025 é o terceiro ano seguido em que nenhum desses estúdios ganha o Oscar. Aliás, pelo terceiro ano consecutivo sequer chegam com pinta de favorito.
Em 2023, Pinóquio por Guillermo Del Toro, da Netflix, venceu todos os prêmios prévios e confirmou seu favoritismo no Oscar.
Em 2024, a disputa estava entre Homem-Aranha Através do Aranhaverso, da Sony, e O Menino e a Garça, do Studio Ghibli, que acabou valendo ao mestre japonês Hayao Miyazaki seu segundo Oscar — o anterior foi por A Viagem de Chihiro (2001).
Agora, Disney e Pixar viram Flow e Robô Selvagem dominarem os prêmios.
Há traços comuns entre os três últimos ganhadores. Para começo de conversa, são assinados por cineasta de fora dos EUA, ou seja, trazem um olhar estrangeiro, embora o mexicano Del Toro já esteja há bastante tempo trabalhando em Hollywood. E não são exatamente aqueles filmes para toda família que misturam aventura, comédia e drama.
O Pinóquio por Guillermo Del Toro é um conto sombrio ambientado na Itália fascista de Mussolini. O Menino e a Garça evoca a infância de Miyazaki, marcado profundamente pelos bombardeios que obrigaram sua família a evacuar duas cidades durante a Segunda Guerra Mundial. E Flow recusa a habitual antropomorfização: sequer há diálogos entre os personagens. Essa opção por retratar os animais com seus instintos primitivos (eles caçam, por exemplo, e podem ser agressivos) convida o espectador a exercer mais sensibilidade no seu olhar, dado que as emoções não são explicitamente expressas, como costuma ocorrer nos títulos da Disney e da Pixar.
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