
Nenhum autor foi mais adaptado para filmes ou séries do que William Shakespeare (1564-1616). O site IMDb lista quase 1,9 mil títulos, sendo que 50 estão em desenvolvimento, pré-produção, pós-produção ou à espera de lançamento.
O número dimensiona não somente o tamanho de sua obra, mas sobretudo sua relevância e sua eterna atualidade — o dramaturgo inglês ajudou a inventar a forma como olhamos para nós mesmos, trafegando entre a tragédia e a comédia, entre o romance e a política.
E Shakespeare pode sempre ser modernizado ou levado para cenários distantes dos originais. Ran (1985), de Akira Kurosawa, transpôs Rei Lear para o Japão dos samurais. Ricardo III (1995), de Richard Loncraine, se passa em uma Inglaterra distópica e fascista da década de 1930. Romeo+Julieta (1995), de Baz Luhrman, troca a Veneza antiga por uma ensolarada Califórnia dos anos 1990.

Mas talvez você nunca tenha visto algo parecido com Grand Theft Hamlet (2024), documentário britânico dirigido por Sam Crane e Pinny Gryll e disponível na plataforma MUBI.
Laureado no SXSW Festival, o documentário é a intersecção entre teatro, cinema e videogame — e também a intersecção entre a alta cultura e o entretenimento popular, fazendo jus às obras de Shakespeare.
Em 2021, durante o lockdown provocado pela pandemia de covid-19 no Reino Unido, dois atores desempregados — Sam Crane e Mark Oosterveen — driblavam a aflição e o tédio jogando Grand Theft Auto V Online. Ao descobrirem uma espécie de arena em Vinewood (a versão GTA de Hollywood), eles tiveram a ideia de encenar o clássico Hamlet dentro daquele universo online de gângsteres excêntricos e assassinatos aleatórios.
Hamlet talvez seja a peça mais célebre de Shakespeare, mas não custa lembrar de sua sinopse, que é razoavelmente apropriada para esse jogo de matança. Na trama, o jovem e atormentado príncipe da Dinamarca recebe a visita do fantasma de seu pai, que alega ter sido morto pelo próprio irmão, Cláudio, agora casado com sua viúva, Gertrudes. Hamlet cria um plano para testar a veracidade da acusação e executar sua vingança.
"Hamlet é um homem de ação, mas que hesita", já disse o escritor Jeferson Tenório, ganhador do Prêmio Jabuti pelo romance O Avesso da Pele (2020). "Tem o dever de vingar a morte do pai, deve empunhar a espada, no entanto, precisa antes refletir sobre a existência, sobre a morte e sobre as paixões. Há sempre uma tensão entre pensar e agir."
Vem dessa tensão uma das mais famosas frases de todos os tempos: "Ser ou não ser, eis a questão". E o texto também deixou de legado outras citações bastante recorrentes, como "Há algo de podre no Reino da Dinamarca", "Fraqueza, teu nome é mulher", "O resto é silêncio" e "Há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha a tua vã filosofia".

Curiosamente, a única adaptação de uma obra de Shakespeare a ganhar o Oscar de melhor filme foi o Hamlet de 1948, dirigido e estrelado por Sir Laurence Olivier, também premiado na categoria de melhor ator. Outra versão que merece elogios é aquela produzida em 2009 pela BBC a partir de um espetáculo teatral da Royal Shakespeare Company com figurinos contemporâneos e o escocês David Tennant no papel principal.
O GTA, por sua vez, é uma das franquias de videogame mais populares do mundo. Surgido em 1997, vende milhões de unidades a cada atualização, e a versão online permite que até 30 jogadores participem simultaneamente de explorações competitivas ou cooperativas de seu mundo ficcional.

Em Grand Theft Hamlet, o primeiro desafio dos atores Sam e Mark foi como evitar ser morto a todo instante por quem só estava a fim de exercitar a fantasia da violência. Aos poucos, a dupla consegue recrutar seu elenco e escolher os cenários.
Ao mesmo tempo em que reforça a perenidade da tragédia sobre o príncipe da Dinamarca, Grand Theft Hamlet retrata dramas experimentados sob o signo do coronavírus e ilustra pontos positivos e negativos de vidas cada vez mais digitais. Se por um lado laços comunitários podem surgir, por outro a imersão pode virar obsessão e alienação.
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