
Reapareceu no menu da Netflix um filmaço dirigido por Brian De Palma e estrelado por Al Pacino: Scarface (1983). Mas o status de filmaço só foi conquistado ao longo do tempo: na época de seu lançamento, foi ignorado no Oscar, sofreu muitas críticas negativas e chegou a receber uma indicação ao Framboesa de Ouro de pior direção.
O célebre crítico e historiador do cinema Leonard Maltin deu uma estrela e meia à releitura que De Palma, em parceria com o roteirista Oliver Stone, fez do clássico Scarface: A Vergonha de uma Nação (1932), de Howard Hawks. Para Maltin, o Scarface de 1983 "chafurda no excesso e no desagradável por quase três horas (são 169 minutos de duração), e não oferece novos insights, exceto que o crime não compensa". Os escritores Kurt Vonnegut (1922-2007), autor de Matadouro 5, e John Irving, de Regras da Vida, afirmaram que abandonaram a sessão depois da cena da serra elétrica.
Porém, já naqueles tempos houve quem valorizasse o filme. A Associação de Imprensa Estrangeira em Hollywood, por exemplo, indicou ao Globo de Ouro Al Pacino, na categoria de melhor ator em drama, Steven Bauer, como ator coadjuvante, e Giorgio Moroder, compositor da música original. O crítico Vincent Canby (1924-2000) elogiou Scarface no jornal The New York Times: "O clima dominante do filme é sombrio e fútil: o que sobe sempre deve descer. Quando acontece em Scarface, a queda é tão aterrorizante quanto vívida e impressionante".

O Scarface de 1932 é considerado um clássico definitivo dos filmes sobre gângsteres. A trama acompanha a ascensão do psicopata Tony Camonte (interpretado por Paul Muni) à condição de chefão do crime na Chicago nos anos 1930. Inspirado em Al Capone (1899-1947), o personagem não hesita em usar a sua metralhadora e mal consegue conter seu desejo incestuoso em relação à irmã.
O Scarface de 1983 segue as linhas gerais do original. Tony Montana (papel de Al Pacino) é um cubano exilado que sobe meteoricamente no universo criminal de Miami. Ele desembarca na Flórida durante o chamado Êxodo de Mariel, que ocorreu entre abril e outubro de 1980, acompanhado por seu melhor amigo, Manny Ribera (Steven Bauer), mais Angel e Chi-Chi.
Se Tony Camonte explorava as bebidas (eram os tempos da Lei Seca), Tony Montana se dedica ao tráfico de drogas. E ambos cortejam e conquistam a mulher do chefe.
No filme de Brian De Palma, trata-se de Elvira (vivida pela então pouco conhecida Michelle Pfeiffer), esposa de Frank Lopez (Robert Loggia), que arranja green cards para os imigrantes em troca do assassinato de um ex-capanga de Fidel Castro (1926-2016). O elenco principal inclui F. Murray Abraham, que interpreta Omar, braço-direito de Lopez, e a estreante Mary Elizabeth Mastrantonio, que faz Gina, a irmã de Montana.

Há pelo menos uma cena que se tornou antológica. É quando Tony Montana, depois de cheirar uma montanha de cocaína, precisa enfrentar sozinho o exército enviado por um traficante rival. Empunhando um rifle M-16A1 equipado com um lançador de granada, o personagem profere uma frase que virou um ícone na cultura pop: "Say hello to my little friend!" (algo como "Diga oi para minha amiguinha!").
Essa cena incrustou-se no imaginário coletivo muito por conta da atuação de Al Pacino, que então já somava cinco indicações ao Oscar — melhor ator coadjuvante por O Poderoso Chefão (1972) e melhor ator por Serpico (1973), O Poderoso Chefão: Parte II (1974), Um Dia de Cão (1975) e Justiça para Todos (1979). Na Zero Hora de 9 de junho de 1984, o crítico Luiz Carlos Merten escreveu: "O centro da mise-en-scène em Scarface é a interpretação rebuscada, obsessiva, por vezes caricatural de Pacino".

Merten também destacou como o roteiro de Oliver Stone permite ver Scarface como um filme sobre "a doença do capitalismo", expressão que deu título ao texto do crítico porto-alegrense. Vale a pena reproduzir um trecho:
"Há um lema orientando a ascensão de Montana, expresso primeiro pela frase no dirigível, quando ele conquista a mulher do chefe, e depois no globo que ele instala em casa: The World Is Yours (o mundo é seu). O personagem age e se movimenta dentro de uma lógica implacável, como quem realmente acredita que o mundo deve ser conquistado à força. Através dele, o cineasta articula a relação entre o mundo dos gângsteres e o dos negócios, mostrando como a ascensão e a acumulação capitalistas, inseparáveis do controle e alargamento dos mercados (incluindo o das drogas), não só são frutos de uma série de crimes em cadeia, como conduzem inevitavelmente ao isolamento e à própria destruição".
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