
A plataforma de streaming MUBI lançou na sexta-feira (28) a coleção "Estranho Mundo Moderno: Filmes de Carolina Markowicz", que reúne cinco obras da diretora e roteirista paulistana, incluindo o curta-metragem O Órfão (2018), premiado no Festival de Cannes, e seu primeiro longa, Carvão (2022). Por telefone, a cineasta deu entrevista à coluna sobre sua trajetória e seus temas (leia logo abaixo).
Com Carvão e seu filme posterior, Pedágio (2023, disponível no Telecine e para aluguel digital), Markowicz, 42 anos, esteve por duas vezes na iminência de ser o título escolhido pela Academia Brasileira de Cinema para disputar uma indicação ao Oscar internacional. Ambos chegaram à lista de seis finalistas _ o primeiro foi preterido por Marte Um (2022), de Gabriel Martins, e o segundo, por Retratos Fantasmas (2023), de Kleber Mendonça Filho.
O texto de apresentação da MUBI diz que "oscilando entre o absurdo e o real, a coleção desafia convenções ao transformar o cotidiano em fábula e o inusitado em espelho da sociedade. Com um humor afiado e uma crítica social mordaz, a filmografia de Markowicz habita um Brasil repleto de contrastes, em que a marginalidade e a fantasia caminham lado a lado".

Codirigido por Fernanda Salloum, Edifício Tatuapé Mahal (2014) é um curta de animação sobre o boneco de maquete argentino Javier Juarez Garcia, que veio trabalhar em um estande de vendas de lançamentos imobiliários em São Paulo.

Ganhador do Kikito de melhor roteiro no Festival de Gramado, Postergados (2016) acompanha a jornada de três pessoas depois da morte: elas têm de conversar com um consultor, e cada uma delas tem direito a fazer uma pergunta.

Namoro à Distância (2017) mistura animação e comédia para retratar um rapaz obcecado por se relacionar com extraterrestres que entra em um programa de disque-sexo com alienígenas.

O curta O Órfão (2018) recebeu a Palma Queer na Quinzena dos Realizadores em Cannes. Na trama, o menino Jonathan (Kauan Alvarenga) é devolvido ao orfanato depois da adoção, por causa de seu comportamento "afeminado".

Carvão (2022), o longa-metragem de estreia de Markowicz, venceu as categorias de roteiro, atriz coadjuvante (Aline Marta Maia) e direção de arte no Festival do Rio. Na trama, Irene (Maeve Jinkings) e o marido, Jairo (Rômulo Braga), vivem de uma pequena carvoaria no quintal de casa, em uma cidadezinha do interior. Os dois têm um filho de seus oito, nove anos, o esperto Jean (o estreante Jean de Almeida Costa), e o pai dela, doente, não sai mais da cama, não fala, não ouve.
Irene e Jairo acabam tentados a aceitar uma proposta lucrativa, mas de risco: hospedar em sua casa um desconhecido. Para o espectador, contudo, o sujeito já tinha sido bem apresentado: Miguel, vivido pelo argentino César Bordón, é um chefão do tráfico de drogas que forjou a própria morte durante uma matança.
"Gosto de ver como cada pessoa se vira", diz Carolina Markowicz

Confira, a seguir, a entrevista que Carolina Markowicz concedeu em 26 de fevereiro, poucos dias depois de o filme brasileiro O Último Azul, de Gabriel Mascaro, receber o Urso de Prata no Festival de Berlim e poucos dias antes de Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, trazer o Oscar internacional para o Brasil.
Tanto em Carvão quanto em Pedágio, você lança mão de poucos personagens e de diálogos coloquiais com humor ácido para retratar e verbalizar marcas do Brasil: a hipocrisia, a violência, a corrupção, o conservadorismo, a homofobia, o absurdo. Seus filmes são microcosmos do país?
Você captou o que, acredito, tento fazer bastante nos filmes. O Brasil, por mil motivos, pelas diferenças socioeconômicas, nossa história, tem um nível de complexidade nas relações humanas que é impressionante e que eu me interesso muito em analisar, mas sem julgamentos. Gosto do cinema que faz mais perguntas do que responde ou tece teses. Meus filmes refletem questionamentos que me faço, sobre o absurdo normalizado, sobre a hipocrisia que faz parte do nosso tecido social e é um pouco inerente ao ser humano. Sou muito interessada em como cada pessoa se vira, como fazer para sobreviver na selva. Filmar a gente brasileira é um jeito de tentar entender a nossa realidade.

Como é reassistir a seus curtas? O que você acha que trouxe para teus longas e o que ficou pelo caminho?
Boa pergunta. Eu revi, sim, como capricorniana que sou, tinha de checar, ver as legendas, gosto de deixar tudo certinho. É muito louco voce rever seu trabalho. É como revisitar um passado que é você uns anos atrás. Eu me vejo lá, mesmo tendo coisas que tecnicamente faria diferente. Tenho carinho por esses curtas. Enxergo lá um pouco desse comentário social, desse humor mais ácido, as pessoas que têm camadas. Não tem muito maniqueísmo, pelo menos é o que tento fazer. Tem esse personagem de fora que vem e balança um pouco o status quo e que tenta pertencer.
O cinema brasileiro vive um momento muito especial, não só pelas três indicações ao Oscar para Ainda Estou Aqui, mas também pelo Urso de Prata para O Último Azul no Festival de Berlim. Me parece que há reconhecimento no Exterior. Mas, a despeito das gordas bilheterias de Ainda Estou Aqui e O Auto da Compadecida 2, parece que ainda existe muito preconceito contra filmes nacionais aqui no Brasil, não?
Eu acho que o cinema foi usado como testa-de-ferro na polarização que o país viveu e ainda vive: "Cinema é coisa dessa esquerda comunista, um instrumento de doutrina, portanto não gostamos desse cinema que é feito aqui". Esse é um discurso patético, mas que foi bastante difundido. É um discurso distópico e infatilizado que está reverberando no mundo. Acho que o filme do Walter Salles chegou de um jeito que, se não foi 100%, unificou na medida do possível o país. As pessoas foram ver o filme, as pessoas querem que o Brasil e a Fernanda tragam o Oscar, sentem alegria e orgulho do cinema brasileiro, sentimentos que estavam um pouco esquecidos nessa teoria da conspiração. É muito importante o que está acontecendo com o Ainda Estou Aqui, o filme consegue ser cinema de autor e super acessível, isso puxa uma atenção (do público).
Qual é seu próximo projeto?
Pretendo filmar no final deste ano ou no começo de 2026 O Funeral. É sobre uma família de classe alta de São Paulo em que o patriarca morre de modo abrupto, e então aparece uma filha, de outro Estado, trazendo algumas coisas inesperadas. Acho que a história fala de cinco palavras que definem meus filmes: família, pertencimento, absurdo, estranho e paradoxo. A família é um núcleo análogo a uma sociedade, e ao mesmo tempo é um espaço muito íntimo, onde voce consegue construir personagens de um jeito muito nu.
Como você faz para criar diálogos tão coloquiais quanto significativos?
Eu gosto de palavra, da nossa língua, e acho fascinante as maneiras diferentes que as pessoas têm de se comunicar. Gosto muito dessa observação, como por exemplo fiz em Joanópolis (no interior de SP), pequisando para Carvão. Não é apenas um laboratório, pessoalmente me dá prazer, é praticamente um hobby, gosto de aprender as gírias, acabo usando. Meus filmes têm bastante diálogos, amo escrever diálogos, pensar como aquela pessoa falaria, os sentimentos que expressa pelas palavras, que às vezes pode ser uma só.
Esse trabalho de pensar como aquela pessoa falaria é um modo de lidar com o desejo de também virar personagem, de também atuar?
Não tenho vontade de atuar. Tem diretores que atuam, e atuam muito bem, mas não é meu caso. Mas amo trabalhar com ator. É uma das partes do processo de que mais gosto. E não existe diálogo natural se aquilo não encaixa na boca do ator, ou com a pessoa com quem ele está contracenando, ou no ambiente. É um trabalho a quatro mãos. Aquilo que a gente escreve aquilo só vira verdade quando está na boca do ator e você sente que faz sentido, é coerente. É um "tá!", algo sensorial, não é uma técnica. Para mim, a melhor parte de dirigir é quando você olha para aquelas pessoas que só estavam no papel e elas existem. É lindo.
É assinante mas ainda não recebe minha carta semanal exclusiva? Clique aqui e se inscreva na newsletter.
Já conhece o canal da coluna no WhatsApp? Clique aqui: gzh.rs/CanalTiciano