Somos livres para sonhar, mas me parece que as maiores chances de Ainda Estou Aqui no Oscar estão na categoria de melhor filme internacional.
A indicação ao Oscar de melhor filme já foi uma vitória enorme e histórica. Pela primeira vez, a Academia de Hollywood credenciou à principal categoria de sua premiação um título que representa o Brasil e que é falado em português. Em 1986, competiu pelo troféu uma coprodução brasileira-estadunidense na competição, O Beijo da Mulher Aranha (1985), assinada pelo argentino naturalizado brasileiro Héctor Babenco (que disputou a estatueta de direção), com elenco internacional — William Hurt (vencedor do prêmio de ator), Raúl Juliá, Sônia Braga — e falado sobretudo em inglês. O representante do Brasil na corrida do então chamado Oscar de filme estrangeiro era outro título, A Hora da Estrela.
Entre os 10 concorrentes ao Oscar 2025 de melhor filme, Ainda Estou Aqui é o segundo título com menos indicações — com três, só está à frente de Nickel Boys, que tem duas. Emilia Pérez soma 13, O Brutalista e Wicked, 10. Conclave e Um Completo Desconhecido receberam oito, Anora, seis, Duna: Parte 2 e A Substância, cinco. E na quase centenária história do Oscar, somente duas vezes a Academia concedeu seu principal prêmio para um filme não falado em inglês: o francês O Artista (2011), que era mudo, e o sul-coreano Parasita (2019).
Na categoria de melhor atriz, Fernanda Torres chega credenciada pelo Globo de Ouro em filme de drama e por fatores afetivos. Além de esbanjar carisma nas premiações e nos programas de TV dos quais participou, Torres tem uma história pessoal bastante atraente: sua mãe, Fernanda Montenegro, disputou o mesmo prêmio por Central do Brasil (1998), mas acabou derrotada por Gwyneth Paltrow, de Shakespeare Apaixonado, em uma das escolhas mais controversas da Academia de Hollywood (entre as rivais, também havia Cate Blanchett, esplendorosa em Elizabeth). Pode ser a oportunidade de uma justiça poética.
O problema para Fernanda Torres é que a concorrência é muito forte. Laureada com o Globo de Ouro de atriz em comédia ou musical por A Substância, Demi Moore compete em duas premiações que não indicaram a brasileira: o Bafta, da Academia Britânica, e o SAG Awards, do Sindicato dos Atores dos EUA, duas entidades que também têm muitos votantes no Oscar. A "narrativa" em torno de Moore é poderosa: sua personagem no filme da diretora francesa Coralie Fargeat espelha a trajetória da própria atriz, que, à medida que a idade avançou, perdeu espaço em Hollywood. Um sentimento de culpa pode pesar na cabeça dos integrantes da Academia, que adoram a oportunidade de consagrar uma volta por cima.
Completam o time de rivais Karla Sofía Gascón (Emilia Pérez), a primeira trans indicada ao Oscar de melhor atriz, Mikey Madison (Anora), um talento em ascensão (tem 25 anos), e Cynthia Erivo (Wicked), a única artista negra da lista — vale lembrar o histórico de queixas contra a falta de reconhecimento das atrizes afro-americanas no Oscar: até hoje, apenas uma, Halle Berry, por A Última Ceia, venceu na categoria. Isso já faz 23 anos.
Dito isso, repito: a grande chance de Ainda Estou Aqui trazer um sonhado Oscar para o Brasil no dia 2 de março está no Oscar de melhor filme internacional, no qual vai competir com Emilia Pérez (França), que estreia nos cinemas em 6 de fevereiro; Flow (Letônia), também indicada na categoria de melhor longa de animação e com lançamento marcado para 30 de janeiro;, A Garota da Agulha (Dinamarca), disponível na plataforma MUBI a partir desta sexta-feira (24); e A Semente do Fruto Sagrado (que representa a Alemanha, embora seja dirigido por um iraniano, ambientado em Teerã e falado em persa), ainda em cartaz na Sala Eduardo Hirtz, em Porto Alegre.
Um dos trunfos de Ainda Estou Aqui é a sobriedade. O diretor Walter Salles evita o dramalhão ou a exploração sádica da tortura, enquanto Fernanda Torres abraça a contenção, equilibrando estoicismo e esperança no papel de Eunice Paiva, que, após o desaparecimento do marido nos anos de chumbo da ditadura militar no Brasil, precisa se reinventar e traçar um novo destino para si e seus cinco filhos. Em um momento de preocupação global com a ascensão de líderes de extrema direita e com tendências ditatoriais, o filme brasileiro reafirma a importância de nunca esquecer as vítimas e os crimes cometidos pelas ditaduras e alerta sobre o impacto devastador da violência do Estado sobre a sociedade.
Esse tema também está presente em A Semente do Fruto Sagrado, mas a campanha do filme perdeu força para conquistar vaga em outra categoria. A presença de Ainda Estou Aqui no Oscar de melhor filme e no de melhor atriz vai dar tremenda visibilidade para o título brasileiro.
Visibilidade é o que não falta a Emilia Pérez, que recebeu 13 indicações. Mas seu favoritismo pode ser abalado nesta reta final do Oscar se Hollywood ouvir os protestos de mexicanos (há 38 milhões deles morando nos Estados Unidos). Isso beneficiaria Ainda Estou Aqui, que conta também com a maciça mobilização da torcida brasileira.
O filme francês dirigido por Jacques Audiard (de O Profeta e Ferrugem e Osso) é um musical — à primeira vista, ousado e empolgante — sobre uma advogada (Zoe Saldana) que é contratada por um temido líder do narcotráfico mexicano (a atriz trans Karla Sofía Gascón) para forjar sua morte e ajudá-lo a ressurgir como a mulher que ele sempre sonhou ser.
O título coleciona tantas distinções quanto queixas. No Festival de Cannes, mereceu o Prêmio do Júri e um troféu para o elenco: Saldana, Gascón, Selena Gomez e Adriana Paz. No Globo de Ouro, ganhou nas categorias de melhor comédia ou musical, longa em língua não inglesa, atriz coadjuvante (Saldana) e canção original (El Mal). Recebeu 11 indicações ao Bafta, da Academia Britânica, e três ao SAG Awards, do Sindicato dos Atores dos EUA.
Agora, um resumo dos pontos polêmicos: Audiard não filmou no México, não escalou atrizes mexicanas para os papéis principais — e a dificuldade de Selena Gómez para falar espanhol virou motivo de zombaria — e contou que não pesquisou sobre o país para escrever a história, refletindo uma postura arrogante e eurocêntrica. Há quem reclame da própria abordagem como musical de um tema tão pesado, a violência do narcotráfico, que já provocou quase 500 mil mortes e cerca de 60 mil desparecimentos — particularmente, acho válida a ideia do cineasta francês e não vejo Emilia Pérez como desrespeito a essa tragédia cotidiana e à dor das famílias (que, claro, têm todo o direito de se sentirem ofendidas).
Há mais: em artigo publicado no jornal El País, o filósofo espanhol Paul B. Preciado, diretor do documentário Orlando: Minha Biografia Política (2023) e um dos principais pensadores contemporâneos sobre políticas do corpo, gênero e sexualidade, fez duras críticas ao filme. "Embora seja apresentado como o resumo do cinema moderno repleto de números musicais e invenções visuais e narrativas, Emilia Pérez é, quando se conhece a história das representações de pessoas trans, um pergaminho de ruínas semióticas coloniais e binárias tão previsíveis quanto anacrônicas", escreveu Preciado. (ALERTA DE SPOILERS) "O filme perpetua uma visão psicopatológica da transição de gênero baseada em quatro premissas: criminalização, exotização etnográfica, representação médica-cirúrgica da transição de gênero e assassinato. E este último não é um spoiler. Todos os filmes normativos sobre pessoas trans acabam matando o protagonista".
Diante de tudo isso, é um grãozinho de areia a última polêmica, sobre o uso de inteligência artificial (IA) em Emilia Pérez. A tecnologia foi empregada para deixar a voz da personagem de Karla Sofía Gascón mais aguda nas canções.
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