Apesar da fragorosa derrota no Globo de Ouro — tinha cinco indicações, mas saiu de mãos vazias —, Anora (2024) vem mantendo a liderança no placar da temporada de premiações, mas cada vez mais acossado por O Brutalista. Segundo o site IMDb, o maior banco de dados cinematográficos da internet, o filme escrito e dirigido por Sean Baker já soma 102 vitórias, incluindo a Palma de Ouro no Festival de Cannes, contra as 96 do título realizado por Brady Corbet.
Nesta quinta-feira (23), Anora deve acrescentar a seu currículo um punhado de indicações ao Oscar — dá-se como certa a presença nas categorias de melhor filme, direção, atriz (Mikey Madison), ator coadjuvante (Yura Borisov) e roteiro original. No mesmo dia do anúncio da Academia de Hollywood, estreia nos cinemas de Porto Alegre esta mistura de comédia romântica tresloucada e drama amargo sobre o chamado sonho americano, que tem como personagens principais uma prostituta nova-iorquina e um jovem milionário russo.
Anora é o oitavo longa-metragem de Baker, estadunidense de 53 anos que é um dos nomes do cinema independente estadunidense mais adorados pela crítica — mas isso não quer dizer que seus filmes sejam pouco acessíveis pelo grande público. Na sua obra, ele imprime um olhar humanizado e caloroso para os marginalizados, como moradores da periferia, imigrantes ilegais e trabalhadores do sexo. Em nome do realismo e do naturalismo, as cenas de transa são cruas, despudoradas, e costumeiramente esses tipos são vividos por atores desconhecidos ou amadores. O elenco de personagens convida a um comentário crítico, mas com senso de humor, sobre o contexto sociopolítico dos Estados Unidos.
O título que fez Baker despontar é Tangerina (2015), disponível na plataforma Filmicca. Rodado na Califórnia com três smartphones iPhone 5S, acompanha uma prostituta transexual, Sin-Dee Rella, que sai da prisão e descobre que o namorado e cafetão está de romance com uma mulher cisgênero.
Seu filme seguinte, Projeto Flórida (2017), presente no menu da Max, mostra a vida de quem mora no subúrbio de Orlando, na Flórida, no caminho para o parque da Disney, em motéis de beira de estrada que parecem os velhos conjuntos habitacionais aqui do Brasil e que nos quais se amontoam famílias, muitas delas expulsas de suas casas por causa da crise hipotecária de 2007 nos EUA. No papel do gerente do motel Magic Castle, Willem Dafoe disputou o Oscar de ator coadjuvante.
Red Rocket (2021), que pode ser visto na Netflix, é sobre um ator pornô que, por causa da sua decadência em Los Angeles, volta para sua pequena cidade natal no Texas, onde vai tentar se aprumar para, quem sabe, recuperar os tempos de glória. A época em que se passa o filme (2016, ano da primeira eleição de Donald Trump à presidência dos EUA), a personalidade do protagonista e o cenário da trama permitem refletir sobre a ascensão política do empresário midiático que acabou de tomar posse para um segundo mandato na Casa Branca.
Em Anora, Sean Baker leva à ação para Nova York — mais precisamente para o bairro do Brooklyn —, com uma esticadinha em Las Vegas. Lá, encena uma história que acena ao clássico conto de fadas Cinderela e ao filme Uma Linda Mulher (1990), mas na ótica peculiar do cineasta.
Sua personagem principal é Ani, apelido pelo qual prefere ser chamada a stripper e garota de programa interpretada por Mikey Madison, 25 anos. Depois de fazer papéis menores em Era uma Vez em... Hollywood (2019) e em Pânico (2022), a atriz se credencia como uma nova estrela graças a seu desempenho em Anora. Além de ter disputado o Globo de Ouro, foi indicada ao Bafta, da Academia Britânica, ao Critics Choice, dos críticos de TV, rádio e internet dos Estados Unidos e do Canadá, ao SAG Awards, do Sindicato dos Atores dos EUA, e ao Independent Spirit Awards, dedicado às produções independentes. Madison atinge um raro equilíbrio: sabemos que ali está uma artista, mas também conseguimos enxergar em Ani uma pessoa real, com autenticidade, sensualidade, potestade, vulnerabilidade e até um tanto de insanidade. Impetuosa mas afetuosa, ela é o motor do filme.
Assinada pelo próprio Sean Baker, a montagem é muito eficiente em ilustrar a rotina exaustiva de Ani, que pula de um cliente ao outro na boate, com o máximo de profissionalismo. Certa noite, o chefe apresenta a ela Ivan Zakharov, o Vanya, 21 anos, filho de um oligarca russo. Encarnado por Mark Eydelshteyn, o personagem vive na farra, bebendo com a turma de amigos ou jogando videogame na sua mansão.
O que começa como, ora, uma transação comercial vai, pouco a pouco, evoluindo para algo que podemos chamar de romance juvenil, com toda sua energia e sua inconsequência. Até que, em meio a uma brincadeira, os dois decidem dar um passo mais sério: um casamento em Las Vegas, que daria o green card para Vanya — um modo de evitar seu retorno à Rússia, onde teria de trabalhar para seu pai — e um anel de diamantes "com pelo menos três quilates" para Ani.
O que acontece daí em diante é absolutamente previsível, embora muitos colegas de imprensa enalteçam como uma revirada disruptiva. Eu antevi praticamente todos os rumos tomados, tanto os cômicos quanto os dramáticos, o que intensificou a percepção — essa, sim, compartilhada com vários outros jornalistas — de que o filme é mais longo do que o necessário (são duas horas e 19 minutos).
Para o meu gosto, falta também um investimento maior no subtexto: entende-se a crítica de Sean Baker à sociedade capitalista que fabrica sonhos coloridos para depois destrui-los, um universo onde as tentativas de ascensão esbarram no regramento não escrito da implacável exclusão social. E é evidente que Ani representa a resistência e o enfrentamento à masculinidade dominadora e exploradora (embora praticada por homens patéticos). Mas essas ideias ficam por demais escondidas sob a superfície de sexo, tensão, comicidade, caos e violência que aproxima Anora de alguns filmes dos irmãos Coen (Fargo, Onde os Fracos Não Têm Vez) e da obra dos irmãos Safdie (Bom Comportamento, Joias Brutas).
Dito isso, também vale ressaltar a presença de coadjuvantes marcantes e a existência de momentos antológicos. Karren Karagulian saboreia cada diálogo de escárnio ou ameaça do sujeito que abandona o batizado do próprio afilhado para tentar resolver o imbróglio do casamento de Ani e Vanya. E a câmera se enamora de Yura Borisov (ator de Compartimento Nº 6) desde que surge em cena como um capanga de poucas palavras.
Toda a sequência em que a realidade bate à porta de Ani é exemplar na sua mescla de humor, ação e desmoronamento emocional — não só da protagonista, mas também do espectador. E a já célebre cena do carro é um primor na sua mistura silenciosa de fúria com resignação, de romantismo com amargura.
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