Mufasa: O Rei Leão (Mufasa: The Lion King, 2024) é o prólogo de uma refilmagem. Ou seja, uma produção com alto teor mercadológico, dedicada a surfar na onda de nostalgia que vem banhando Hollywood e a faturar junto a um espectador que gosta de consumir mais do mesmo. Vide o top 10 das bilheterias de 2024, amplamente dominado por continuações, franquias ou, na melhor das hipóteses, adaptações de obras de outras mídias (caso do musical Wicked).
Surpreendentemente, ou subversivamente, pelas mãos de Barry Jenkins, diretor do oscarizado Moonlight (2016) e da minissérie The Underground Railroad (2021), Mufasa também se revela um filme com alto teor sociopolítico.
Já em cartaz nos cinemas brasileiros, esta é a 19ª refilmagem com atores ou em estilo realista dos clássicos desenhos animados da Disney desde Alice no País das Maravilhas (2010), que arrecadou US$ 1 bilhão e deu sinal verde para novas produções do estúdio. Outros três filmes tiveram renda bilionária: A Bela e a Fera (2017), Aladdin (2019) e O Rei Leão (2019), atualmente a décima maior bilheteria de todos os tempos, com US$ 1,66 bilhão.
Esse título reconta a história da antológica animação O Rei Leão (1994): para se tornar o rei da savana africana, o leãozinho Simba precisa lidar com o trauma pela morte do pai, Mufasa, da qual se considera responsável, e enfrentar o verdadeiro culpado, seu tio, o sarcástico e vil Scar. Quem dirigiu o longa foi Jon Favreau, que já havia assinado uma versão live-action da Disney, o excelente Mogli: O Menino Lobo (2016), ganhador do Oscar de efeitos visuais por causa da exploração de novas tecnologias para a interação entre atores e personagens digitais. Em O Rei Leão, Favreau foi mais radical no emprego da computação gráfica: nada existe na vida real, tudo foi criado digitalmente. A tentativa de dar ares de documentário naturalista é tão grande, que espectadores reclamaram da "falta de expressão" dos animais.
Em Mufasa, os avanços tecnológicos resolveram esse problema, dotando de mais recursos artísticos o elenco fotorrealista. E o roteirista Jeff Nathanson, o mesmo do filme de 2019, agora se viu com a possibilidade de se aventurar um pouco mais — mas sem se distanciar demais.
Mufasa começa quando Simba (voz de Donald Glover no original) e Nala (Beyoncé), que está à espera de seu segundo filhote, deixam a primogênita Kiara (Blue Ivy Carter) aos cuidados da dupla cômica de O Rei Leão: o javali Pumba (Seth Rogen) e o suricato Timão (Billy Eichner). Logo se junta a eles o sábio macaco Rafiki (John Kani), que decide contar a ela a história de seu avô, Mufasa, personagem dublado por Aaron Pierre, importante coadjuvante em The Underground Railroad e protagonista do elogiado filme Rebel Ridge (2024).
ALERTA DE SPOILERS (embora isso seja informado nos trailers).
Ficamos sabendo que Mufasa não era da realeza, pelo contrário. Nasceu em uma pequena família que sonhava com um oásis chamado Milele e logo se tornou órfão por causa de uma inundação. Ele acaba sendo salvo do ataque de crocodilos por outro leãozinho, Taka (Kelvin Harrison Jr., o Fred Hampton de Os 7 de Chicago e o B.B. King de Elvis). Este, sim, é um herdeiro do trono, como filho do abusivo Obasi (Lennie James) e da terna Eshe (Anika Noni Rose). Apesar da relutância do pai, Mufasa vira o irmão adotivo de Taka.
Juntos, o príncipe e o órfão vão brincar na savana, cantar as composições de Lin-Manuel Miranda (como I Alaways Wanted a Brother, talvez a única que permanece na memória após a sessão), amadurecer e encarar pelo menos dois grandes desafios. O primeiro é físico: uma gangue de leões brancos comandada pelo cruel e vingativo Kiros, mais um vilão para a galeria do ótimo ator dinamarquês Mads Mikkelsen — que saboreia cada palavra no seu chamamento por sangue. O segundo é psicológico: gradativamente, as diferenças de personalidade e temperamento vão se sobrepondo à afinidade entre os manos leoninos.
REPITO O AVISO SOBRE SPOILERS.
Mas, de novo, vale dizer que o trailer antecipa a revelação de quem Taka é na mitologia de O Rei Leão: Scar, o invejoso tio de Simba. Mufasa cumpre à risca seu papel de prólogo, explicando, por exemplo, como se formou a Pedra do Rei e onde Rafiki achou o seu cajado. Também espelha cenas clássicas, mas em contextos diferentes.
Por ser um filme voltado à família inteira, Mufasa acaba oscilando muito. A trama cheia de dramaticidade, perigo e um sentimento mais adulto, o ressentimento, volta e meia é interrompida pelos números musicais ou pelas piadas de Pumba e Timão. Não à toa, a crítica britânica Clarisse Loughrey escreveu que Mufasa é "mais um contundente estudo de caso sobre a fragilidade da voz do artista na indústria" e disse que encontrar as marcas de Barry Jenkins "é como colocar uma venda no Louvre e tentar tatear o caminho até a Mona Lisa".
Mas a própria Loughrey enumerou alguns lances típicos de Jenkins, como um grande close no rosto de um personagem, "confrontando o público com a essência de sua animalidade", e uma tomada prolongada, em que a câmera balança e serpenteia entre a grama seca.
Há mais de Jenkins em Mufasa do que pode parecer à primeira vista. Sua obra, que inclui Se a Rua Beale Falasse (2018), é caracterizada por personagens que tentam enfrentar as restrições e as violências impostas à população negra, como a escravização e o racismo. Também é pautada pelo respeito e pelo elogio à ancestralidade. Vide a explicação que deu para os travellings desconcertantes que flagram o elenco principal e os figurantes de The Underground Railroad olhando diretamente para o espectador:
— Durante a produção, houve um momento em que olhei para os atores e percebi que estava olhando para meus ancestrais, um grupo de pessoas cujas imagens foram amplamente perdidas para o registro histórico. Pausamos o trabalho para retratá-los. Fizemos isso várias vezes nas filmagens. Com os pés nos lugares habitados pelos nossos antepassados, tivemos a sensação de vê-los, de vê-los verdadeiramente, e quisemos partilhar isso. Este é um ato de ver. De vê-los. E talvez, de uma forma tola, de abrir um portal onde eles possam nos ver, os benfeitores de seus esforços, das vidas que viveram.
O Rei Leão de Jon Favreau já havia escalado um elenco majoritariamente negro e investido em sonoridades africanas. O Rei Leão de Barry Jenkins vai além.
A narrativa de Rafiki — cujo dublador em inglês fazia o pai do Pantera Negra no Universo Marvel — é uma homenagem aos antepassados, transmitindo para as novas gerações a história de luta.
Ao roteiro e ao discurso do protagonista, foram acrescentados temas políticos e sociais. Diante de tantas vozes negras, a gangue de leões brancos remete aos supremacistas brancos que promovem o ódio. Mufasa, por sua vez, representa as minorias oprimidas, as classes menos favorecidas, os desgarrados e os imigrantes que desembarcam sem um tostão no bolso. Gente que pode, sim, chegar lá. Eis uma frase marcante do filme:
— Não importa quem você era, mas quem se tornou.
Em outro momento, Mufasa conclama os demais animais a ajudarem no combate aos leões brancos. Sua justificativa alude ao célebre sermão do pastor luterano alemão Martin Niemöller (1892-1984) proferido em 6 de janeiro de 1946, quatro meses após o fim da Segunda Guerra Mundial: "Primeiro eles vieram buscar os socialistas, e eu fiquei calado — porque não era socialista. Então, vieram buscar os sindicalistas, e eu fiquei calado — porque não era sindicalista. Em seguida, vieram buscar os judeus, e eu fiquei calado — porque não era judeu. Quando vieram me buscar, já não havia mais ninguém para protestar por mim". O jovem leão brada: "Minha luta é sua luta!".
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