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Com sessões de pré-estreia nesta quarta-feira (19) e em cartaz a partir de quinta (20) nos cinemas, Adão Negro (Black Adam, 2022) é mais uma tentativa da DC de fazer um filme da Marvel. Verdade que há uma diferença fundamental: o personagem interpretado por Dwayne Johnson — o eterno The Rock — é um anti-herói, em vez de um mocinho à la Capitão América ou Homem-Aranha. Aliás, nasceu como vilão, em 1945, nas histórias em quadrinhos do Shazam. Mas, de resto, existem muitas semelhanças. O que é uma pena.
Oficialmente, o chamado Universo Estendido da DC (DCEU na sigla em inglês) surgiu com O Homem de Aço (2013), de Zack Snyder. Na esteira da trilogia do Batman dirigida por Christopher Nolan, a Warner, dona da editora de HQs, decidiu seguir um caminho mais amargo, sombrio e violento, como se conscientemente quisesse se distanciar da leveza, das cores e do bom humor do Universo Cinematográfico Marvel (MCU).
Títulos como Batman vs. Superman (2016) e Esquadrão Suicida (2016) não chegaram a ser fracassos comerciais, mas nenhum se aproximou do US$ 1 bilhão e ambos colecionaram comentários negativos. Aí, o negócio foi trocar o tom sinistro pela ensolarada ilha de Themyscira, palco da abertura de Mulher-Maravilha (2017), onde a origem trágica de Batman e Superman, ambos órfãos, cede espaço à infância idílica da princesa Diana. Depois, a DC trouxe o diretor Joss Whedon, que tinha no currículo dois sucessos de bilheteria da Marvel — Os Vingadores (2012) e Vingadores: Era de Ultron (2015), com um total de US$ 2,9 bilhões arrecadados —, para encher de piadinhas constrangedoras Liga da Justiça (2017).
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Para o bem ou para o mal, o MCU tem uma "cara". O DCEU não tem. Por um lado, isso é positivo, pois permite certa liberdade criativa — vide Coringa (2019) e Batman (2022), que sequer são considerados na cronologia cinematográfica, e mesmo a extravagância de Aquaman (2018) ou a ultraviolência de O Esquadrão Suicida (2021). O lado negativo aparece em filmes como Adão Negro. O esforço em mostrar ao público que a DC, a exemplo da Marvel, tem um universo compartilhado transforma-se em afobação, atropelo, apelação.
Com orçamento de US$ 200 milhões, Adão Negro foi escrito e dirigido por estreantes no mundo dos super-heróis. Adam Sztykiel, coautor de Scooby!: o Filme (2020), assina o roteiro com Rory Haines e Sohrab Noshirvani, dupla indicada ao prêmio Bafta por O Mauritano (2021). A direção coube ao espanhol Jaume Collet-Serra, célebre pelos filmes de terror A Casa de Cera (2005), A Órfã (2009) e Águas Rasas (2011) e pela parceria com o ator Liam Neeson (Desconhecido, Sem Escalas, Noite Sem Fim e O Passageiro), além de realizador de Jungle Cruise (2021), estrelado por Dwayne Johnson.
Pode-se enxergar em Adão Negro um pouco de tudo isso, desde o humor pastelão de Scooby! à carga política de O Mauritano, passando pelo emprego de elementos do terror e culminando na ascensão de um herói casca-grossa, sem pudor para fazer o mal se isso, de alguma forma, significar o bem.
E pode-se enxergar, também, uma série de reflexos do Universo Cinematográfico Marvel.
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Como Eternos (2021), Adão Negro começa milhares de anos antes de Cristo. Estamos em Kahndaq, um fictício reino situado no Oriente Médio, onde o monarca Akhenaton escravizou o povo para encontrar um raro e poderoso minério, o eternium (como o vibranium extraído na Wakanda de Pantera Negra). Seu objetivo é confeccionar a mágica e perigosa Coroa de Sabbaq, o que desperta a preocupação do Conselho dos Magos — a mesma entidade que concedeu poderes ao menino Billy Batson em Shazam! (2019).
Corta para os dias atuais, quando Kahndaq está sob o jugo de uma organização criminosa, a Intergangue. Entre os cidadãos que tentam se rebelar, está Adrianna Tomaz, papel da estadunidense de pai iraniano e mãe espanhola Sarah Shahi, protagonista do seriado Sex/Life (2021-). Mãe do (insuportável) garoto Amon, durante uma missão ela acaba libertando Teth-Adam, o controverso personagem de Dwayne Johnson: ele é um herói, como uma estátua sugere (no que talvez seja o melhor e o mais pertinente comentário político de Adão Negro), ou um vilão? "O mundo nem sempre precisa de um Cavaleiro Branco", dirá um personagem.
Se por um lado é bacana ver o carismático Johnson, 50 anos, arranhar um pouquinho da imagem de herói tipo família, por outro seu Adão Negro não é muito diferente do Harry Callahan vivido por Clint Eastwood, do Jack Bauer da série 24 Horas ou mesmo das encarnações cinematográficas do Batman. E se por um lado é bacana que não se escute a voz do ator durante boa parte do início do filme, por outro a transição de sujeito calado para sujeito sarcástico parece abrupta.
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Na sua primeira aparição, Adão Negro faz, contra o exército da Intergangue, uma exibição de imensuráveis superpoderes — da hipervelocidade à indestrutibilidade, da força bruta aos raios mágicos. Tanto pelo contexto quanto pelo cenário, foi inevitável lembrar de cenas semelhantes, como as de Homem de Ferro (2008), que abriu o MCU, ou as do recente Thor: Amor e Trovão (2022). A trilha sonora ampliou a sensação de déjà vu: como é típico em aventuras de super-herói, usa-se um clássico do rock — no caso, Paint It Black (1966), dos Rolling Stones (que já havia sido ouvido em Nascido para Matar, Advogado do Diabo, Ecos do Além e nas séries Westworld, The Blacklist e Pennyworth, só para citar algumas ocasiões).
O surgimento de Adão Negro logo atrai a atenção de Amanda Waller, a personagem que, nos filmes da DC, desempenha um papel equivalente ao de Nick Fury nos filmes da Marvel — a propósito, é uma coincidência a mais que ambos sejam interpretados por astros negros (Viola Davis e Samuel L. Jackson, respectivamente). Apesar de, nos dois filmes do Esquadrão Suicida e no seriado Pacificador (2022), ter sido retratada como líder da Força-Tarefa X, criada para forçar os supervilões a fazer o trabalho sujo do governo dos EUA, Adão Negro revela que Waller também está no comando da Sociedade da Justiça da América, outro grupo de super-heróis — ou seja: como Fury, ela é uma espécie de cola nesse universo.
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Em Adão Negro, a Sociedade da Justiça apresenta-se em uma configuração mínima — e que, como é da natureza dos gibis de super-herói, remete a personagens da Marvel. O Gavião Negro é um homem alado, como o Falcão — a escalação de um ator negro (Aldis Hodge, de O Homem Invisível e Uma Noite em Miami) amplia a comparação. Pierce Brosnan interpreta o Senhor Destino, um mago à la Doutor Estranho. Famoso por comédias românticas da Netflix, Noah Centineo faz o Esmaga-Átomo, que pode ficar gigante como o Homem-Formiga. Completa o time Ciclone (Quintessa Swindell), que controla o vento — mais ou menos como a Tempestade dos X-Men.
Esse quarteto permite a Adão Negro tecer mais alguns comentários políticos. A Sociedade da Justiça se surpreende ao descobrir que não são vistos como heróis pelos moradores de Kahndaq, que vivem já há 27 anos sob opressão. É um cutuco nas nações ocidentais ("Onde vocês estavam enquanto sofríamos?"), mas não deixa de ser um endosso ao intervencionismo estadunidense. E é irônico, para não dizer lamentável, que, em nome de evitar a destruição de Kahndaq, os personagens se engalfinhem em combates que acabam por destruir o país, além de ceifarem dezenas, centenas, talvez milhares de vidas — sem que haja qualquer tipo de consequência. Pelo contrário: como é notório no MCU, momentos de gravidade são logo abafados por piadas de salão. Ou pela música onipresente composta por Lorne Balfe, que nunca dá sossego para o público processar por si próprio suas emoções.
Ao mesmo tempo, a introdução da Sociedade da Justiça atende a desejos dos fãs da DC, que querem ver o cinema refletir a superpopulação dos quadrinhos da editora, e abre novos caminhos para o Universo Estendido, nos moldes do que a Marvel vem fazendo. Mas esses personagens e suas relações não são bem desenvolvidos, não ficamos tão familiarizados com eles, de modo que o espectador pode não se importar com seu destino.
Por fim, como também vem ocorrendo com as produções da Marvel, a cena pós-créditos tende a se tornar mais comentada do que tudo o que a antecedeu, com os já característicos resgate de um personagem e prenúncio de um conflito com proporções bíblicas. Na sessão de imprensa de Adão Negro, com certeza foi o momento que mais atiçou a plateia, a ponto de provocar urros.