A Tela Quente desta segunda-feira (30) exibe, pela primeira vez na televisão aberta, o filme brasileiro mais falado dos últimos tempos: Bacurau (2019), em cartaz a partir das 22h35min na RBS TV. É um fecho e tanto para um mês cheio de grandes atrações nessa faixa — antes teve Corra! (2017), As Viúvas (2018), um especial com episódios do seriado The Mandalorian (2019) e a nova versão de Nasce uma Estrela (2018).
Laureado com o prêmio especial do júri no Festival de Cannes do ano passado, Bacurau também conquistou troféus em mostras nos Estados Unidos, no Canadá, no Peru, na Alemanha e na Espanha. O longa-metragem dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles segue na crista da onda. No último dia 13, apareceu na lista de indicados na categoria de melhor filme internacional do Gotham Awards, uma premiação do cinema independente (o teto do orçamento é de US$ 35 milhões) que é considerada um termômetro do Oscar, por abrir a temporada de estatuetas (a entrega será em 11 de janeiro de 2021) e, no mínimo, criar um zunzunzum em torno dos concorrentes.
Depois, o jornal The New York Times elencou a atriz Sônia Braga como um dos 25 melhores atores do século, destacando sua atuação em Bacurau e em Aquarius (2016), a obra anterior de Mendonça Filho. Que, recentemente, lançou um livro com os roteiros e textos sobre esses dois filmes mais O Som ao Redor (2012). Agora, com a Tela Quente, que costuma atrair um grande número de telespectadores, é a vez de ampliar a audiência de Bacurau, visto no cinema por 740 mil pessoas.
O apagamento do Brasil
A história é ambientada na homônima e fictícia (mas fidedigna) cidadezinha do sertão pernambucano. Uma placa na beira da estrada conclama: "Se for, vá na paz". Mas é uma guerra o que o espectador encontrará em Bacurau, onde um grupo de americanos empreende uma caçada humana, e onde os diretores Mendonça Filho e Dornelles aplicam elementos característicos do cinema de gênero produzido nos Estados Unidos. Sobretudo o faroeste e o policial, mas também o horror e a ficção científica de cineastas como John Carpenter (referenciado nos créditos de abertura, no drone que parece um disco voador e na trilha sonora).
As coisas não são sempre explicitadas pelos personagens, mas a todo instante um discurso político impregna cenas e cenários, cheios de sentido e significado, simbolismo e sentimento. Em entrevista a GZH, Kleber Mendonça Filho disse que Bacurau é um filme sobre a relação do Nordeste com o Brasil, e do Brasil com o mundo. O longa-metragem começa justamente colocando o Brasil e o Nordeste no mundo. Contudo, no globo terrestre mostrado, apenas os países vizinhos estão iluminados. No futuro imaginado pelos cineastas — o filme se passa "daqui a alguns anos", como um letreiro logo avisa —, o Brasil tornou-se um grande deserto. Não apenas geográfico, mas de ideias e de emoções. Nossos cérebros e corações estão apagados. Falta inteligência e falta empatia.
A cena de abertura reforça a visão do Brasil como um país abandonado (aliás, chega a ser irônico que, hoje, a reputação do país esteja tão arranhada no resto do mundo). A bordo do caminhão-pipa que leva água e Teresa (interpretada por Barbara Colen) de volta a Bacurau, passamos pelas ruínas de uma escola municipal (mais adiante na trama, veremos um carro de polícia enferrujado, outro símbolo da falência do Estado) e, literalmente, atropelamos caixões que caíram pela estrada. É a morte em abundância, a morte banalizada, uma espécie de profecia sobre como o presidente Jair Bolsonaro minimizou o impacto da pandemia de coronavírus. (da "gripezinha" ao "país de maricas", passando pela frase "E daí, quer que eu faça o quê?").
Teresa retornou para o enterro da avó, Dona Carmelita (Lia de Itamaracá, uma famosa cirandeira de Pernambuco), que reuniu todos os habitantes, em uma sinalização sobre a importância da preservação da memória. Sua mala passa de mãos em mãos até ser acomodada dentro de casa. É um gesto que estabelece e dá rosto ao protagonismo coletivo de Bacurau. Se no filme anterior de Mendonça Filho, Aquarius (2016), a personagem principal era uma burguesa que lutava sozinha, agora a resistência é compartilhada por toda sorte de tipos marginalizados: somam-se às mulheres os negros, os nordestinos, os indígenas, os professores, as prostitutas, os homossexuais (como a médica lésbica vivida por Sônia Braga), transexuais e até mesmo bandidos.
Os vilões da história são aqueles que costumam ser os mocinhos em boa parte dos títulos exibidos no Brasil: os americanos. O estranhamento é reforçado pela dublagem do elenco estrangeiro, com vozes que o público reconhecerá de filmes, desenhos animados e seriados nos quais estão do lado do bem — Mauro Ramos, por exemplo, fez o Sulley de Monstros S.A. e o Pumba de O Rei Leão, Carol Valença é a Supergirl da série homônima, Márcio Araújo empresta seu talento ao Homem-Formiga no universo cinematográfico da Marvel. De uma tacada só, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles criticam o que veem como subserviência política, econômica e cultural do Brasil em relação aos Estados Unidos.
Para realizar seu safári humano, o grupo de assassinos americanos liderado pelo alemão Michael (o veterano Udo Kier, sempre aterrador com seus frios mas intensos olhos azuis) conta com a colaboração de dois brasileiros oportunistas — vindos do Sul, eles frisam — e o apoio do prefeito Tony Júnior (que parece viver em uma realidade paralela, a da elite, e que, em nome de votos, distribui alimentos com prazo de validade vencidos e remédios tarja preta à população). O controle também é tecnológico: graças a drones, a trupe observa o dia a dia dos moradores (como se fossem as empresas que acompanham cotidianamente nossos passos digitais), e Michael chega a riscar Bacurau do Google Maps.
Em contraponto à invasão americana, Bacurau investe em uma brasilidade tipicamente nordestina, do suco de caju ao repentista, ainda que temperados pelo sincretismo — outra marca nacional difundida a partir da região, principalmente na Bahia. Em uma bela cena de capoeira, que ilustra a comunhão dos bacurauenses, a sonoridade afro-brasileira logo dá lugar aos sintetizadores de Night, do americano John Carpenter. A cidade abraça as trocas culturais, mas também celebra seus heróis da resistência — do paraibano Geraldo Vandré, ícone das canções de protesto na época da ditadura militar, presente na trilha sonora, ao pernambucano Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, mais célebre cangaceiro da história, evocado em Lunga, personagem trans que o cearense Silvero Pereira encarna com paixão. Há uma confluência entre brutalidade e sensibilidade em Lunga: assim como Lampião, corta cabeças; assim como Lampião, era alfabetizado — o Rei do Cangaço do século 21 "escreve textos muito bonitos", diz o professor Plínio (Wilson Rabelo).
Atenção: se você ainda não viu Bacurau, o parágrafo abaixo pode conter spoilers.
É Lunga quem comanda o sangrento desfecho de Bacurau, que, em meio à violência dos personagens, tem pelo menos dois detalhes cenográficos que merecem sua atenção. Em uma televisão, uma manchete de um canal noticioso anuncia que "execuções públicas recomeçam às 14h no Anhangabaú" — o espaço tradicional de shows e comícios no centro de São Paulo virou palco da barbárie institucionalizada. Os lugares onde a população de Bacurau se protege e se arma para enfrentar os invasores são bastante expressivos: uma escola e um museu. Educação, cultura e memória significam a sobrevivência de um povo.