Reaceso pelo caso George Floyd – o homem negro de 46 anos assassinado por um policial branco na cidade de Minneapolis –, o caldeirão da tensão racial nos Estados Unidos não respingou apenas em questões políticas, sociais e econômicas. Os protestos contra o racismo também ecoaram, com força, na seara cultural. Estátuas de escravocratas foram derrubadas por manifestantes ou retiradas pelo governo na Inglaterra, nos EUA e na Bélgica. Na terça-feira (9), a plataforma de streaming HBO Max suspendeu temporariamente a exibição do clássico ...E o Vento Levou (1939), vencedor de oito Oscar, por causa da forma como representa escravos, conformados, e os brancos, heroicos.
As críticas ao drama romântico ambientado na época da Guerra Civil americana não são novas. Tampouco ...E o Vento Levou é o único filme ou seriado alvo de protestos. Há 20 anos, Spike Lee, que lançou em 1º de junho um curta sobre a violência policial contra negros e que nesta sexta-feira (12) estreia na Netflix seu 24º longa-metragem, Destacamento Blood – sobre quatro veteranos de guerra negros que voltam ao Vietnã à procura dos restos mortais de seu comandante e de um tesouro enterrado –, já atacara impiedosamente a maneira como Hollywood e a TV pintam o negro no seu país.
Foi em A Hora do Show (2000), cujo título original, Bamboozled, significa trapaceado. A palavra teria vindo de discursos do líder negro Malcolm X, assassinado em 1965 e retratado por Lee na cinebiografia homônima, de 1992.
Quem protagoniza o filme – que, infelizmente, não reencontrei em nenhuma plataforma de streaming – é Pierre Delacroix, personagem interpretado pelo comediante Damon Wayans. Educado em Harvard, Pierre é o único roteirista negro de uma grande emissora de TV. Seu chefe (Michael Rapaport), um branco que se diz mais negro do que os negros, lhe dá um ultimato: ou Pierre cria um seriado black de sucesso, ou vai para a rua.
O escritor tem uma ideia mirabolante: recuperar os shows de menestréis do século 19, em que artistas brancos pintavam a cara de preto e reforçavam o estereótipo do escravo burro, preguiçoso e bom cantor. Ao lado de sua assistente (Jada Pinkett-Smith), recruta um sapateador sem-teto (o dançarino Savion Glover) e seu parceiro cômico (Tommy Davidson). Ambos são negros – que vão se pintar de preto.
O primeiro é batizado de Mantan, em alusão ao ator Mantan Moreland (1902-1973), famoso por encarnar criados e mordomos em comédias dos anos 1930 e 1940. O segundo ganha a alcunha de Sleep'n'Eat (Come-e-Dorme).
A Hora do Show é uma sátira feroz, lançada quando, até então, em 72 edições, apenas seis vezes a Academia de Hollywood havia premiado com o Oscar atores e atrizes negros (de 2001 para cá, houve mais 13, mas nove delas nas categorias de coadjuvantes). Ninguém escapa, nem seu próprio diretor, hoje com 63 anos, já naquela época o mais influente dos cineastas negros americanos, depois de obras como Faça a Coisa Certa (1990), Febre da Selva (1991) e o documentário 4 Little Girls (1997). O produtor encarnado por Rapaport diz que "o público negro não quer saber desses filmes politizados de Spike Lee". Há também um amargo autoquestionamento. A aceitação pela mídia e pela sociedade brancas requer assimilação? Onde termina a piada e começa o preconceito?
O diretor trabalha em cima do estudo de Donald Boogle sobre cinco estereótipos negros, Toms, Coons, Mulattoes, Mammies and Bucks – An Interpretative History of Blacks in American Films. Os Toms equivalem à figura do Pai Tomás, negro servil, aquele que sempre diz " sim, senhor". Coons são os palhaços de olhos esbugalhados. Mulattoes são os mulatos simpáticos mas fadados a um triste fim por tentar ocultar suas origens. Mammies são as negras gordas, imortalizadas pela criada vivida pela oscarizada Hattie McDaniel em ...E o Vento Levou. E Bucks são os negros brutais e hipersexualizados, "estrelas" de O Nascimento de uma Nação (1915), a apologia de D.W. Griffith à Ku Klux Klan – a organização supremacista branca que viraria tema de Lee em Infiltrado na Klan (2018).
No espantoso clipe final de A Hora do Show, uma colagem de imagens de filmes, desenhos animados, programas de TV e comerciais, todos esses cinco estereótipos são "homenageados". Dói ouvir uma porção de personagens pronunciar, em sequência, a servilidade imposta: "Yes, mam (sim, madame). Yes, mam. Yes, mam".
Hollywood e os negros em três momentos
BLACKFACE: A IMPOSIÇÃO DO ESTEREÓTIPO – Nos primórdios do entretenimento americano, até atores negros pintavam o rosto de preto, acentuavam o vermelho dos lábios e contornavam os olhos com branco. A blackface não foi longe no cinema, mas seus estereótipos, sim. Os Toms remetiam ao servil Pai Tomás ("Sim, sinhô!", diziam). Coons eram os bobões de olhos esbugalhados, ignorantes e preguiçosos (Stepin Fetchit interpretou vários). Mammies, as criadas das famílias sulistas, como a oscarizada personagem de ...E o Vento Levou. Bucks, os brutais e hipersexualizados negros vividos por brancos no filme de 1915 O Nascimento de uma Nação, que pôs a racista Ku Klux Klan como salvadora da pátria.
BLAXPLOITATION: A REINVENÇÃO DO ESTEREÓTIPO – O movimento nasceu da luta pelos direitos civis com a fome por novos mercados. Os filmes eram dirigidos e estrelados por negros, com tramas calcadas em violência e sexo, nessa ordem – davam vez ao gueto, mas reforçavam estereótipos ("brutais, vulgares, hipersexualizados"). Sweet Sweetback's Baadasssss Song ( 1971) abriu alas ao gênero, que teve como estrelas Pam Grier (a sexy vingadora de Coffy e Foxy Brown) e Richard Roundtree (o policial Shaft rendeu três filmes e um seriado). O sucesso gerou subgêneros (vide Blácula) e atraiu grandes estúdios – a Paramount lançou em 1975 o controverso Mandingo, inspiração para o Django Livre de Quentin Tarantino, que celebrara a Blaxploitation em Jackie Brown.
BLACK FAT WOMAN: A MERCANTILIZAÇÃO DO ESTEREÓTIPO – Comediantes americanos negros decidiram ganhar dinheiro explorando o preconceito. Desde os anos 1990, se travestem de obesas para destilar piadas fisiológicas. Eddie Murphy deu a largada, com O Professor Aloprado 1 e 2, ambos com bilheteria superior a US$ 120 milhões nos EUA. Martin Lawrence tentou copiar com a franquia Vovó... Zona. O diretor, roteirista e ator Tyler Perry virou fenômeno com a série Madea, que nasceu no mercado de DVDs e depois pulou para a tela grande. Já os irmãos Marlon e Shawn Wayans reverteram o blackface: em As Branquelas, interpretam dois policiais negros que se disfarçam de loiras – fúteis e burras, como manda o estereótipo.