
No enterro do papa Francisco, que o mundo acompanhou detalhe por detalhe pela TV e pelas redes sociais, três coisas chamaram a atenção de quem acompanhou outros rituais fúnebres no Vaticano. Primeiro, o caixão simples, feito de cipreste, semelhante ao que estamos acostumados a ver nos velórios de pessoas comuns. Segundo, a falta daquele pedestal que deixava os papas bem acima dos mortais. Terceiro, e mais importante, os sapatos pretos já gastos pelas caminhadas. Tudo como ele deixou orientado para quando chegasse o dia da partida.
Os sapatos pretos do papa Francisco dizem mais sobre ele do que mil palavras sobre humildade. Os padres, lembremos, fazem voto de pobreza, mas quando ascendem na carreira e chegam ao posto máximo da Igreja têm o direito a vestes de imperador. Francisco poderia ter usado sapatos vermelhos de pelica, veludo ou cetim desde o primeiro dia, mas não os quis. Preferiu os sapatos pretos que sempre usou como cardeal, percorrendo a periferia de Buenos Aires para levar a palavra de Deus aos necessitados de conforto.
Seu antecessor, Bento XVI tinha os sapatos vermelhos confeccionados por um artesão italiano, Adriano Stefanelli. O sapateiro peruano Antonio Arellano também confeccionava os confortáveis pisantes vermelhos de Bento XVI, abolidos por Francisco. Sapateiros desse naipe não ficaram pobres porque perderam o Papa como cliente, porque o mundo tem ricos e famosos de sobra para comprar sapatos sob medida, confortáveis como se o dono pisasse em nuvens. Entre os clientes de Stefanelli, por exemplo, estavam Barack Obama e George W. Bush.
Com tanto a dizer sobre a bondade de Francisco, por que gastar dois parágrafos sobre os sapatos do pontífice? Porque eles, junto com a roupa branca e sem adorno, traduzem materialmente o espírito do papa franciscano. Mais do que a roupa e o sapato, o mais marcante na atuação do papa Francisco foi seguir à risca as palavras de Jesus, o que lhe valeu o equivocado epíteto de "comunista".
Os adeptos da baixa política que atribuíram a Francisco a ideologização da Igreja Católica deveriam ler o Evangelho (porque alguns parecem falar da Bíblia sem jamais ter lido ou escutado os trechos que falam de Jesus como homem que perdoava, compreendia, ajudava e não ostentava sua condição de filho de Deus).
Mesmo pessoas que não acreditam em Deus se renderam ao carisma, à coerência e à integridade do Papa Francisco. Ele falava para o mundo e não só para os católicos em suas pregações em favor da paz, da defesa do meio ambiente, do respeito aos seres humanos e aos animais.
Seus 12 anos como Papa foram tão intensos e revolucionários que será difícil para os cardeais reunidos no conclave escolherem um sucessor à altura. Minha primeira curiosidade será olhar para os pés do Pontífice e ver a cor dos seus sapatos.