"Olhe aqui, eu estou no céu", canta DAVID BOWIE no começo da música Lazarus. Em retrospecto, podemos interpretar a letra como premonitória e a canção do disco lançado na sexta-feira como o canto do cisne do artista. Apesar da beleza e do vigor desse epitáfio, Lazarus e o álbum Blackstar não podem aliviar a dor da perda de uma das mentes mais criativas já surgidas no universo pop. Como poucos músicos, o inglês soube captar inquietações e tendências artísticas e culturais de seu tempo e traduzi-las a sua maneira, jamais parecendo estar a reboque ou na carona – ao contrário: graças a uma sensibilidade extrema e a um talento singular, o cantor e compositor antecipava o que outros apenas suspeitavam e com seu sopro fazia a brisa virar furacão. Um dom que levou o escritor português de origem angolana Valter Hugo Mãe a escrever em seu perfil no Facebook: "david bowie começou pelo futuro. de algum modo, o seu tempo ainda não chegou. talvez, por isso mesmo, nos aguarde mais adiante".
Cresci prestando muita atenção à arte de David Bowie. Desde cedo na adolescência, percebi que aquele astro do rock era diferente: ao longo dos anos, sua música ecoou sonoridades como o soul, o folk, a eletrônica, o funk, o jazz – provando como o ecletismo não é sinônimo de falta de originalidade ou personalidade. Tomei emprestado esse exemplo para a vida e busquei desde então sempre estar atento ao novo e ao desconhecido, cuidando para nunca deixar a curiosidade arrefecer.
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Lembro quando escutei pela primeira vez Under Pressure, faixa que encerra o disco Hot Space (1982), da banda Queen. A música que sobe em crescendo até o clímax catártico, a combinação perfeita do falsete de Freddie Mercury com a voz grave de Bowie e a letra pungente me arrebataram de cara. Under Pressure para mim é a melhor canção dos anos 1980 – e é com ela que eu invariavelmente encerro meu set discotecando na festa Balonê. No sábado passado, não fugi à tradição de 15 anos e fechei os trabalhos com ela. A reação do público, porém, pareceu-me dessa vez entusiasmada além do usual: a pista lotada do bar Ocidente dançou, pulou e cantou a plenos pulmões os versos em inglês "E o amor desafia você a mudar nossa maneira de / Cuidar de nós mesmos / Esta é nossa última dança / Esta é nossa última dança / Isto somos nós / Sob pressão". No final, a canção foi aplaudida com entusiasmo.
É possível que o lançamento de Blackstar na véspera tenha turbinado o entusiasmo da galera, sorrindo extasiada ao som de um tema que já tem mais de três décadas. Só sei que nossa última dança com David Bowie foi memorável.