
Até no último minuto antes de ser sepultado, Francisco rompeu tradições e marcou um ponto de inflexão histórica: pela primeira vez, o caixão de um papa circulou pelas ruas de Roma, em cortejo transmitido ao vivo para o mundo inteiro assistir.
Nos pouco mais de 30 minutos em que o papamóvel adaptado para conduzir o féretro do Pontífice argentino cruzou pelos conhecidos cartões-postais da Cidade Eterna, imagens feitas do alto, por drones, e por terra, de câmeras nos veículos à frente, transmitiram tudo em tempo real.
A última vez que um papa foi sepultado fora dos muros do Vaticano fora em 1903, com Leão XIII, enterrado na Basílica de São João de Latrão. Obviamente, há mais de um século não havia transmissão ao vivo — muito menos com drones…
Outro ponto de inflexão foi quando o caixão foi recebido nas escadas da Basílica de Santa Maria Maggiore por um grupo de pessoas, entre elas crianças, imigrantes, transgêneros e prisioneiros, com flores brancas nas mãos. Mario Bergoglio, que escolheu Francisco como nome papal em homenagem ao santo dos pobres, até no fim de sua jornada terrena foi acompanhado pelos mais renegados da sociedade.
É difícil escolher uma cena em especial de tudo o que vimos e vivemos neste sábado, 26 de abril de 2025, em Roma. Há símbolos e rupturas de tradição por todos os lados.
Ainda na Maggiore, antes de ser levado até o local da sepultura, os funcionários do Vaticano fizeram uma pausa com o caixão em frente à capela paulina que abriga o ícone conhecido como Salus Populi Romani. A cada viagem apostólica, era ali que Francisco rezava antes e depois da peregrinação, em frente ao quadro da Virgem que teria sido pintado por Lucas, o evangelista.
Depois de breves instantes, o caixão do Papa foi, finalmente, levado para a sepultura simples, como pedido por Francisco em seu testamento: um túmulo próximo ao chão, com a inscrição "Franciscus" sobre a lápide, acompanhado de uma reprodução da cruz peitoral que utilizava.
Esses foram os últimos atos revolucionários de adeus ao Pontífice, de um conjunto de rituais que começou às 10h08min na Praça São Pedro, quando o caixão do Papa apareceu no altar em frente à basílica.
No lado esquerdo, estavam sentados os membros do Colégio Cardinalício; à direita, as autoridades de mais de 160 países — Lula e Donald Trump, por exemplo, ficaram a cerca de 15 cadeiras um do outro, no primeiro evento em que os dois participam juntos.
Mas também estavam lá Emmanuel Macron, da França, Javier Milei, compatriota do Papa, o presidente italiano, Sergio Mattarella, a primeira-ministra Georgia Melloni, e pelo menos 10 reis.
No início da cerimônia, o Evangelho foi posicionado sobre a tampa do caixão de Francisco. O livro, que simboliza a abertura à vida, teve páginas sendo viradas pelo vento leve que soprava na Praça São Pedro durante toda a manhã.
A homilia, a cargo do cardeal que presidiu a celebração, dom Giovanni Battista Re, era um dos momentos mais aguardados. A leitura do texto costuma não apenas resumir o legado de um papa, mas enviar sinais ao mundo sobre as preocupações da Igreja. É também o único discurso fora do restrito ritual.
Re, um dos cardeais mais próximos de Francisco, lembrou a primeira viagem feita pelo argentino, em 2013, para a ilha de Lampedusa, local de desembarque dramático de imigrantes no Mar Mediterrâneo. O público aplaudiu. Depois, recordou os apelos de Francisco pela paz e contra os conflitos atuais:
— A guerra é somente morte de pessoas, destruição de casas, de hospitais e escolas. A guerra deixa sempre o mundo pior que antes.
Na reunião de diferentes idiomas na Oração Universal, uma brasileira, Bianca Fraccalvieri, jornalista da Vatican News, leu em português a mensagem:
— Pelos povos de todas as nações, que, praticando incansavelmente a justiça, possam estar sempre unidos no mar fraterno e busquem incessantemente o caminho da paz.
Após a eucaristia, a Ladainha de Todos os Santos anunciou que a hora da despedida se aproximava. Sob o dobrar dos sinos, o caixão de Francisco foi levado, lentamente, para dentro da Basílica, após ser incensado por líderes das igrejas de rito oriental e aspergido com água benta pelo celebrante. Era aplaudido de pé por longos minutos.
Encerrada a cerimônia, o papamóvel saiu pela Porta do Perugino e ganhou as ruas de Roma.
A comunhão protagonizada pelo funeral do papa argentino permitiu até um encontro inusitado: enquanto o mundo observava, ao vivo, o caixão no papamóvel percorrer as principais ruas de Roma, cruzar o Rio Tibre, alcançar a Piazza Venezia, o Fórum Romano e o Coliseu, até a Maggiore, local de seu descanso eterno, dentro da Basílica de São Pedro, sentados próximos a um dos altares, frente a frente, Trump e o presidente ucraniano, Volodimir Zelensky, conversaram por alguns minutos. Foi o primeiro encontro entre os dois desde o bate-boca na Casa Branca.
Quem sabe, ali mesmo, na Praça de São Pedro comovida, atrás das portas da basílica, Francisco não tenha protagonizado seu primeiro milagre.