Em 2010, o australiano Julian Assange, fundador do WikiLeaks, provocou a fúria dos Estados Unidos ao revelar mais de 700 documentos secretos relacionados às guerras no Iraque e no Afeganistão. O material, com vídeos reveladores da ação das forças armadas americanas, exibiam abusos aos direitos humanos, mortes de civis e outros crimes de guerra.
Perseguido após sete anos em que conseguiu se manter asilado na embaixada do Equador, em Londres, Assange acabou preso em 2019. Desde então, está na penitenciária de segurança máxima de Belmarsh, no Reino Unido. Os EUA tentam a extradição para território americano, onde será julgado e, se condenado, poderá pegar uma pena de 175 anos de reclusão.
Para uns, Assange é um traidor que revelou documentos sigilosos de um governo, colocando em risco a segurança nacional dos EUA. Para outros, é um herói da liberdade de expressão e de imprensa, uma vez que, aproveitando-se das novas tecnologias, expôs a truculência americana.
Agora, a saga de sua família em busca de mostrar que Assange é um preso político ganhou uma poderosa arma: o filme "Ithaka - A Luta de Assange”, do diretor Ben Lawrence com produção de Gabriel Shipton e Adrian Devant – respectivamente, meio-irmão e cunhado do fundador do WikiLeaks.
A ideia para a obra partiu de Gabriel, ao visitar Assange na prisão pela primeira vez, em 2019. Passou, então, a acompanhar o pai, John Shipton em sua peregrinação pelo mundo em busca de apoio para a liberdade do filho.
A obra foi lançada em Porto Alegre na noite quinta-feira (24), na Sala Redenção, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com a presença de John. Antes, à tarde, o pai de Assange conversou com a coluna. Falou sobre sobre as condições de saúde do filho na prisão no Reino Unido, onde aguarda a decisão definitiva da Justiça britânica sobre a extradição para os EUA. Também afirmou que sua reclusão fere a liberdade de imprensa no mundo e prejudica a todos os jornalistas. Com voz serena, John surpreendeu-se com o frio em Porto Alegre.
- Está adorável - disse.
Além da capital gaúcha, John esteve em várias cidades do país, inclusive em Brasília, onde visitou ministros do governo Lula no Palácio do Planalto e recebeu apoio para sua causa.
Leia os principais trechos da entrevista.
Como o senhor está sendo recebido no Brasil. Espera alguma ajuda do governo Lula?
Em primeiro lugar, gostaria principalmente de dizer obrigado ao presidente Lula, que tem nos apoiado muito. Recentemente, em Londres, ele nos deu um forte apoio. Também ele estava curioso para saber por que a imprensa ocidental não apoiava Julian com mais vigor. O povo do Brasil tem sido incansável em seu apoio. É como uma rocha sobre a qual podemos descansar. Pelos últimos 14 anos, eles continuaram a apoiar Julian sempre que podiam. Entendo que Lula é o presidente e fala em nome do Brasil. Portanto, as preocupações do povo brasileiro serão endereçadas pelo presidente Lula da maneira que puder. Mais uma vez, obrigado, Lula, e obrigado ao povo do Brasil.
Como está a situação de Julian Assange em termos de saúde? Parece que ele não é bem, certo?
Ele não está bem. Ele está há 14 anos na prisão, de uma forma ou de outra. E, agora, caminha para o quinto ano de encarceramento em uma prisão de segurança máxima. Essa circunstância não deixa ninguém saudável. É muito prejudicial à saúde. Mas Julian, apesar disso, consegue fazer alguns exercícios, ler seus livros e ficar atento à situação jurídica e trabalhar em seu caso da melhor maneira que pode.
O senhor consegue falar com ele?
Sim, em telefonemas de 10 minutos, no máximo. Ele recebe duas visitas por semana de sua família, dos meninos e de Stella (esposa de Assange).
Acho que é difícil, mas não digo que seja impossível (evitar a extradição). Acho provável que possamos evitar a extradição porque se trata de uma perseguição política.
Dez minutos por semana ao telefone?
Dependendo da disponibilidade, ele pode fazer uma ligação de 10 minutos. Não é de graça. Ele precisa ter crédito em sua conta para fazê-las. Não posso ligar. Ninguém pode ligar para ele, mas ele pode ligar para quem já se registrou como membro da família.
Quando foi a última vez que o senhor conversou com Assange?
Recentemente, não faz muito tempo. A gente só conversa sobre a família, sobre o que eu faria no Brasil... Apenas assuntos comuns. Nada muito diferente do que que qualquer outro pai conversaria com seu filho. Falamos sobre as crianças e assim por diante. Irmãos, irmãs...
Como o senhor se sentiu quando Assange expôs, em 2010, os documentos sobre os crimes americanos no Afeganistão e no Iraque? Imaginou naquele momento que ele teria problemas?
Sim, imaginei. Pensei: “Isso é extraordinário”. E ele foi muito corajoso. E a qualidade com que produziu os vídeos dos assassinatos e todo o trabalho, os telegramas, os arquivos da guerra no Iraque e do Afeganistão, da Baía de Guantánamo, todos foram produzidos sem quaisquer erros ou equívocos . Achei simplesmente maravilhoso, na verdade.
Os Estados Unidos têm um ex-presidente, Donald Trump, que levou documentos secretos para casa, depois que deixou o governo, e está livre. O seu filho revelou materiais de interesse público, e está preso. Qual é o seu sentimento?
(Risos) Bem, eu estava lendo sobre isso. O presidente (Barack) Obama levou consigo documentos secretos para casa. O presidente (Joe) Biden guarda muitos documentos secretos em sua garagem. O presidente Trump os levou para sua casa de férias em Mar-a-Lago. Na verdade, Julian não pegou nenhum documento. Julian é um publicador. Não há comparação. Há uma deliberada perseguição a Julian e uma tentativa de intimidação à imprensa e a outros jornalistas.
Qual é o impacto e a relevância de sua prisão para o debate sobre democracia, liberdades individuais e deveres governamentais?
Embora sempre lutemos contra a opressão dos editores e jornalistas nos Estados Unidos, nós defendemos nossas fontes. Ocorre o mesmo com Julian. Sempre que insistimos que o governo dos Estados Unidos pare com essa terrível perseguição a Julian, acho que estamos os ajudando (a imprensa). Acho que vamos vencer. No caso do Brasil, o presidente representa todo o povo do Brasil e diz que não consegue entender quais são essas acusações contra Julian. O primeiro-ministro da Austrália diz a mesma coisa. O líder da oposição na Austrália também. No parlamento europeu, há grupos em defesa de Julian. Milhares de pessoas em todo o mundo o apoiam. É importante ter em mente que não estamos sozinhos, que esse é um problema global. É um problema do jornalismo. E, igualmente importante, é um problema para pessoas comuns sobre como ter acesso ao conhecimento.
Assange sabe dessa mobilização? Ele pode acessar essas informações, mesmo na cadeia?
Sim, ele está ciente. Mas os únicos meios de comunicação a que ele tem acesso na prisão são locais, canais de televisão como a BBC ou jornais como o Telegraph e o Daily Mirror. Bem, a BBC é apenas porta-voz do governo, segue a linha do governo, da mesma forma que o Telegraph e o Daily Mirror. Portanto, o trabalho de milhares de jornalistas independentes em todo o mundo, de pequenas editoras, de centenas e centenas de páginas no Facebook e no Instagram, os blogs e os meios de comunicação alternativos são vozes poderosas. Ele não consegue ter acesso a esse tipo de conteúdo. Na verdade, eu diria que os jornalistas independentes, os meios de comunicação alternativos, as redes sociais e a atividade das pessoas comuns nas redes sociais são a força que libertará Julian. É o que penso.
O senhor o visitou na prisão?
Sim. Eu o visitei em outubro passado e irei novamente, provavelmente em outubro próximo. Mas, enquanto isso, é melhor que eu continue trabalhando, e Stella e as crianças o visitem.
Os Estados Unidos e o Reino Unido têm uma relação estreita. O senhor não acha que será muito difícil evitar a extradição de Julian para território americano?
Acho que não. Acho que é difícil, mas não digo que seja impossível. Acho provável que possamos evitar a extradição porque se trata de uma perseguição política. O tratado de extradição do Reino Unido com os Estados Unidos afirma especificamente que não haverá extradições para fins políticos. Entendemos dessa forma. Essa é a circunstância legal. Mas a circunstância real é que se trata de uma perseguição política. A classe política não gostou de demonstrar a todos os outros jornalistas, editores, que serão perseguidos da mesma forma. É uma perseguição política vingativa. Não tem nada a ver com a lei. Sendo uma perseguição política, é possível, por meios políticos, retirar as acusações. Tudo que se precisa é que a Casa Branca solicite ao Departamento de Justiça dos EUA que sejam revistas as acusações devido à preocupação do governo em relação ao constrangimento da Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos (que garante o direito à liberdade de expressão). É uma questão muito simples.
Sobre o filme, o senhor gostou do resultado?
Não consigo assistir. Simplesmente, não consigo. É muito doloroso. Então, nunca assisto. Agradeço o trabalho do diretor (Ben Lawrence) e o trabalho do Gabriel Shipton, o produtor. Estou muito grato a todos por lançarem um olhar e verem o que isso realmente significa para uma família, porque todo mundo tem uma família. O que realmente significa para uma família quando um de seus membros é perseguido até a morte. O que isso realmente significa, como você luta, se você pode lutar e com quem você pode lutar.
O senhor tentou conversar com o presidente Lula sobre o tema, buscando alguma mediação para libertação do seu filho?
Conheci o presidente Lula depois que ele saiu da prisão. Eu o encontrei em Genebra e depois, novamente, em Paris. Mas não pretendo gastar o tempo do presidente. Ele tem sido muito generoso. Tudo que eu gostaria de fazer é agradecer e pedir que as instituições da América Latina, por exemplo, a Organização dos Estados Americanos (OEA), a Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos), a Alba (Alternativa Bolivariana para as Américas), a Corte Interamericana, o Mercosul, nos ajudem a trazer Julian para casa.