Os dois mandatos anteriores do PT na esfera federal, o atual plano de governo e o discurso após a vitória dão dicas de como o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deve comandar a política externa a partir de 1º de janeiro.
No entanto, as dinâmicas das relações internacionais se movimentam de forma bem diferente de 20 anos atrás, quando o petista conquistou, pela primeira vez, a Presidência: o chamado "boom das commodities" já não irriga a economia como na primeira década do século 21, a China cresce menos do que outrora, há uma crise energética em curso em razão da guerra na Ucrânia, inflação generalizada, forças nacionalistas colocam em xeque a democracia em vários países e um mundo a reconstruir no pós-pandemia.
Ainda que os problemas sejam globais - e o papel do Brasil limitado, como potência média -, o presidente eleito promete reposicionar o país como ator central das discussões internacionais, entre elas na área ambiental. Veja alguns desafios do futuro governo na política externa.
Relação com os Estados Unidos e a Europa
A relação política entre os Estados Unidos e o Brasil enfrenta desgaste desde que Joe Biden assumiu a Casa Branca - Jair Bolsonaro foi o último presidente de uma grande nação a parabenizar o democrata. O alinhamento entre Lula e Biden deve facilitar a diplomacia presidencial. No discurso da vitória, o petista salientou o desejo de retomar parcerias com os Estados Unidos e a União Europeia em novas bases.
- Não nos interessam acordos comerciais que condenem nosso país ao eterno papel de exportador de commodities e matéria-prima.
O acordo de livre-comércio Mercosul-UE está paralisado. O bloco europeu avalia que impactos ambientais e sanitários do tratado pode acelerar o desmatamento na América do Sul e não oferece garantias suficientes de combate às mudanças climáticas.
Uma vantagem de Lula é a simpatia de líderes europeus, em especial de centro esquerda, esquerda e centro, como o presidente francês, Emmanuel Macron, um dos primeiros a parabenizá-lo pela vitória. Mas só boa vontade não adianta. O ranço com o governo brasileiro será reduzido na Europa desde que a política externa fique longe de radicalismos ideológicos e se mostre pragmática na defesa dos interesses nacionais.
China e relações Sul-Sul
Dois dos principais desafiantes da ordem global liberal, Rússia e China, estão no Brics, grupo criado durante os governos do PT e que reúne, além do Brasil, ainda África do Sul e Índia. O bloco perdeu força nos últimos anos. No futuro governo Lula, o Planalto precisará retomar a tradição pragmática da diplomacia brasileira para negociar com Rússia e China sem desagradar aos Estados Unidos. A Rússia é vista hoje como pária internacional, por causa da agressão à Ucrânia. Bolsonaro evitou condenar o ataque e negociou a manutenção do fornecimento de fertilizantes. Lula tende a seguir essa linha, evitando atritos com Vladimir Putin e mantendo neutralidade. No caso chinês, Xi Jinping concentra cada vez mais poder em torno de si - e as rusgas com o Ocidente são questão de tempo.
Ambiente e Amazônia
A Amazônia é um dos principais motivos de crítica ao governo Bolsonaro, desde o primeiro ano de mandato, quando houve aumento dos índices de queimadas. O presidente insinuou dados maquiados por ONGs estrangeiras. Os assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalismo britânico Dom Phillips expuseram descontrole sobre a região, com atuação de madeireiros, garimpeiros, pescadores ilegais e traficantes.
Antes mesmo da posse, Lula tem o desafio de anunciar sua agenda ambiental de forma concreta e sinalizar a retomada do protagonismo brasileiro na luta contra as mudanças climáticas - o envio de representantes à COP27, no Egito, nas próximas semanas, seria uma demonstração de que o tema é prioridade.
- Vamos lutar pelo desmatamento zero da Amazônia - prometeu, ao garantir também promover o desenvolvimento sustentável das comunidades que vivem na região amazônica.
A confirmação dessa iniciativa dependerá de resultados concretos no combate aos crimes na Amazônia e a redução do desmatamento, das queimadas e do garimpo ilegal.
Multilateralismo e Conselho de Segurança
No discurso da vitória, Lula deixou claro que deve repetir a fórmula do primeiro mandato, reinserindo o Brasil nos fóruns multilaterais.
- Hoje, estamos dizendo ao mundo que o Brasil está de volta. Que o Brasil é grande demais para ser relegado a esse triste papel de pária do mundo - afirmou.
Há o entendimento de que o país vive um isolamento internacional, diante de posturas adotadas pelo Itamaraty e pelo atual presidente, como o alinhamento direto com o governo Donald Trump, que prejudicou a relação com os EUA após a eleição de Joe Biden. O negacionismo em relação à gravidade da pandemia de coronavírus e o agravamento dos incêndios florestais e desmatamento da Amazônia pioraram a imagem do Brasil lá fora. Na atual guerra, o governo Bolsonaro evitou condenar as ações de Putin na Ucrânia e visitou o presidente russo às vésperas da invasão, o que despertou críticas do Ocidente.
No governo Bolsonaro, o Brasil também se retirou de organismos multilaterais, como o Pacto Global sobre Migração.
Lula pretende retomar a antiga reivindicação brasileira de reforma e ampliação do Conselho de Segurança das Nações Unidas (ONU). No discurso da vitória, afirmou:
- Vamos lutar novamente por uma nova governança global, com a inclusão de mais países no Conselho de Segurança e com o fim do direito a veto, que prejudica o equilíbrio entre as nações.
Diante de conflitos como o da Ucrânia, pretende posicionar o Brasil como possível mediador - algo que tentou, sem sucesso, na crise nuclear do Irã, no passado.
Relação com os vizinhos na América Latina
Integração da América do Sul e Latina e do Caribe é uma das máximas dos governos do PT, está presente no plano de governo e apareceu no discurso da vitória.
- O Brasil que apoiou o desenvolvimento dos países africanos, por meio de cooperação, investimento e transferência de tecnologia. Que trabalhou pela integração da América do Sul, da América Latina e do Caribe, que fortaleceu o Mercosul e ajudou a criar o G-20, a Unasul, a Celac e os Brics. Hoje, estamos dizendo ao mundo que o Brasil está de volta - afirmou.
A viagem rápida do presidente argentino, Alberto Fernández, a São Paulo para encontro com Lula, nesta segunda-feira (31), é sinal dessa aproximação. A primeira viagem internacional do presidente eleito também deve ser a Argentina. O país vizinho atravessa uma crise delicada e um dos projetos de integração bilateral apresentado pelo atual embaixador em Brasília Daniel Scioli prevê pagamento de comércio em moeda local (fundamental para amenizar a escassez de divisas) e um possível swap entre bancos centrais.
Mas a América Latina vive momento diferente de 20 anos atrás, quando havia um boom de commodities para irrigar projetos de elevado gasto social. A região também sofre as consequências econômicas da pandemia e da guerra na Ucrânia, com inflação em alta.
O discurso de integração, uma vez que pelo menos 10 países serão governados pela esquerda a partir de 1ª de janeiro, deve prosperar, mas, com tantos problemas internos, as prioridades dos Executivos (alguns já desgastados) devem ser a agenda doméstica.
Em relação à esquerda radical, que governa Cuba, Nicarágua e Venezuela, Lula terá como desafio calibrar a aproximação ideológica histórica com esses governantes e condenações a violações de direitos humanos. A tendência do governo do PT é retomar as relações com o país de Nicolás Maduro, o que deve render as primeiras críticas internas e externas no campo da diplomacia.