Um dos principais historiadores do país, Sidney Chalhoub vive uma ponte-aérea pessoal e acadêmica entre Campinas (SP) e Cambridge, Estado de Massachusetts (Estados Unidos). A experiência da pandemia como morador das duas cidades e professor da Unicamp e de Harvard incitaram-no a aprofundar os estudos sobre crises sanitárias ao longo da história e como as sociedades as têm enfrentado, em especial Brasil e EUA.
Autor de livros como Visões da Liberdade: uma História das Últimas Décadas da Escravidão na Corte, Cidade Febril: Cortiços e Epidemias na Corte Imperial e A Força da Escravidão, Chalhoub escreveu, recentemente, um ensaio sobre a resistência à imunização nos dois países intitulado Vacina: História, Ciência e Negacionismo, publicado na Serrote, revista do Instituto Moreira Salles. Nesta entrevista, ele traça um panorama histórico da evolução das vacinas e discute as origens dos movimentos antivacina ao longo dos séculos. A conversa ocorreu via Zoom, a partir de sua casa, em Campinas.
O que explica a maior resistência à vacinação contra a covid-19 nos EUA do que no Brasil?
No início, havia muita semelhança entre a forma como a coisa acontecia no Brasil e nos EUA. Nos dois países você tinha presidentes (Jair Bolsonaro e Donald Trump) afinados na forma de ver a pandemia, sempre falando sobre a necessidade de proteger a economia, o que para eles significava ser contra o distanciamento social. Conforme o conhecimento sobre como a doença era transmitida foi se desenvolvendo, eles também começaram a se opor ao uso de máscaras e a defender medicamentos sem eficácia comprovada. Claro que havia, naquela época, muitos rumores: alguém começava uma pesquisa sobre algum remédio, parecia que estava dando certo e aquilo já explodia. Mas os dois adotaram alguns desses medicamentos, cuja ineficácia logo foi comprovada, e eles continuaram fazendo propaganda. Acabei de ler que na Áustria os antivacina defendem até hoje tratamentos com invermectina e vitamina D. Isso na Áustria! Trump depois respondeu à pressão investindo recursos em pesquisa para as vacinas. Bilhões de dólares foram investidos pelo governo dos EUA. Ainda assim, ele batia de frente o tempo inteiro com as autoridades de saúde, o que também acontecia no Brasil, onde o presidente estava às turras com ministros da Saúde – dois deles tiveram de sair depois de pouco tempo na pasta porque aquilo que recomendavam era desautorizado por Bolsonaro. A quantidade de mortes registradas nos dois países, em escala muito superior ao que representam da população mundial, mostra que algo deu errado.
A quantidade de mortes registradas nos dois países, em escala muito superior ao que representam da população mundial, mostra que algo deu errado.
Quando surge a vacina, há uma mudança de rumo em Brasil e EUA, certo?
Sim, em vários aspectos. O primeiro é que nos EUA há vacina. E também a mudança de governo, com um novo presidente muito interessado em acelerar a distribuição. A vacinação começa a todo vapor por lá. Em abril, eles chegaram a vacinar 3 milhões de pessoas em apenas um dia. O Brasil, ao contrário, não comprou vacina quando estava disponível, no início, e depois foi aquela corrida. O serviço de vacinação demorou a engatar. Agora está indo bem, mas perdemos vários meses e, com isso, dezenas de milhares de vidas sem necessidade – inclusive se você for pensar na aceitação da vacina no país, que é enorme. Aí a divergência entre os dois países se amplifica no sentido de que nos EUA a resistência à vacina se torna cada vez mais forte. Lá, você não consegue ir além do patamar de 60%, 70% da população que aceita a vacinação. No Brasil, passamos disso e ainda não chegamos no teto. As pesquisas falavam que 95% da população brasileira ou já se vacinou ou aceitará se vacinar. O curioso é que, nos EUA, entre os democratas, o número é parecido com o geral do Brasil: 95% dizem que aceitariam se vacinar ou já se vacinaram. Entre os republicanos, esse percentual é de 50%. Tentando entender essa aceitação do ponto de vista histórico – até porque há resistência desde que existe vacina – escrevi o artigo para a Revista Serrote.
O que está ocorrendo nos EUA, Ou seja, bater em um teto e não avançar mais em termos de imunização, pode também ocorrer aqui?
Brincamos que, ao contrário de economistas e cientistas políticos, que preveem o futuro e sempre erram, nós historiadores prevemos o passado – e raramente concordamos com o que aconteceu (risos). Prever o que vai ocorrer é difícil. Pesquisas indicam que 95% da população brasileira ou já se vacinou ou gostaria de se vacinar, o que é uma porcentagem altíssima, quase sem paralelo no mundo. As informações que temos são de que ainda vai demorar muito para batermos no teto. E o ritmo continua acelerado. Em São Paulo, 100% da população adulta foi vacinada. Nada indica que a gente chegue a esse teto aquém de uma proteção coletiva necessária.
O Sistema Único de Saúde (SUS) salvou o Brasil de mais mortes, depois de um início de vacinação complicado? E qual o peso da tradição de imunização brasileira nesse alto percentual?
A administração militar no Ministério da Saúde durante a pandemia foi uma catástrofe. O que é curioso é que, no início dos anos 1970, durante a ditadura, houve o engajamento do Brasil na campanha internacional pela extinção da varíola. Isso criou um know-how. Havia visitas de técnicos estrangeiros, orientação, se criou um corpo técnico no Ministério da Saúde que aprendeu a vacinar em massa. Tivemos a crise da meningite, que o regime militar primeiro tentou esconder. A crise se acentuou, e eles tomaram a decisão de comprar 80 milhões de vacinas da França. Aplicaram 80 milhões de doses em poucos meses no país inteiro. Criaram-se essas experiências e um corpo técnico treinado que sabe o poder da vacinação e sabe como fazer. E isso começou a ser aplicado nas vacinações infantis. Em 1973, foi criado o Plano Nacional de Imunização. Em 1980, houve um divisor de águas, a criação dos dias nacionais de vacinação. Foi uma coisa controversa no interior do ministério porque alguns técnicos achavam que saúde era uma coisa para todos os dias. Mas a verdade é que a ideia foi um sucesso absoluto, as escolas faziam propaganda nos dias anteriores, a TV falava sobre o tema, as famílias se mobilizavam, havia o Zé Gotinha. Hoje, todas as famílias brasileiras sabem que têm de levar as crianças para receberem suas doses nos dias de vacinação. O SUS aumentou a capilaridade do sistema, com postos de saúde no território nacional inteiro. Claro que, com muitas diferenças entre si, há precariedades em várias regiões, mas é um sistema impressionante. E ele todo se mobiliza para os dias nacionais de vacinação. Isso criou na população uma cultura de imunização pública e gratuita. Isso é totalmente diferente dos EUA, onde não há saúde oferecida pelo Estado.
Movimentos antivacina têm diferentes rostos – algo religioso, no Cinturão Bíblico americano, a suposta defesa da “liberdade”, explorada pela extrema-direita... Como o senhor descreve esses movimentos?
A história do movimento antivacina tem um certo paralelismo na forma como surge no Brasil e nos EUA. Nos anos 1980, quando esse movimento começa a ganhar corpo nos EUA, e o mesmo no Brasil, surge entre populações altamente educadas, gente com formação universitária, com informação científica. Em certo momento, você percebe que a carteira de vacinação da criança começa a se encher. Nos anos 1990, as crianças estão tomando mais de uma dúzia de vacinas no primeiro ano de vida. Há um enorme investimento em biotecnologia nos EUA durante a Guerra Fria, porque eles achavam que isso era um dos elementos do conflito. Isso acelera incrivelmente a descoberta de antibióticos e de vacinas. Está dentro dessa concepção paranoica de defesa nacional: “Pode ter guerra biológica, podem jogar vírus de varíola aqui”. No início dos anos 1990, as famílias começam a se preocupar: “Nossa, nossos filhos estão levando muita vacina”. Algumas dessas vacinas tinham toxicidade, componentes que levavam mercúrio. Então, começa a haver essa preocupação.
Na história da vacinação, há momentos de maior apoio e outros de resistência?
Sim. Há imprevistos e viradas. Por isso é difícil prever o futuro. Como aconteceu no caso da primeira vacina contra a poliomielite. Houve um erro de produção em uma indústria, que causou a morte de 10 crianças e ajudou a criar essa desconfiança em relação às big pharma nos EUA. Os episódios podem ocorrer, é um sistema que tem de estar o tempo inteiro sob vigilância. E estamos em uma situação pandêmica, em que tudo é novo. Os próprios cientistas estão trabalhando durante o voo, sem tempo para fazer as coisas como normalmente fariam. Estão seguindo os protocolos possíveis em uma situação de emergência. Tenho confiança no sistema, mas a gente não pode prever que vai sair tudo 100%. Certamente, o que temos com a vacina é infinitamente mais seguro do que sair por aí sem ela. A população brasileira entendeu isso, mas, em outros lugares, a coisa é mais difícil. No início, a resistência à vacina era dessas pessoas que entendiam que a vacina tinha elementos de toxidade. Essas críticas acabaram sendo importantes: as vacinas, hoje, são bem menos tóxicas.
Se é verdade que a resistência à vacina existe desde que existe vacina, essa resistência é diferente em cada período. Ao longo do século 19, quando só havia vacina contra a varíola, muito da resistência tinha a ver com as próprias incertezas e inseguranças do processo de vacinação.
Que paralelo é possível traçar entre o Brasil que viu a Revolta da Vacina, em 1904, e o de Hoje, a partir da relação entre os direitos individual e coletivo?
Se é verdade que a resistência à vacina existe desde que existe vacina, essa resistência é diferente em cada período. Ao longo do século 19, quando só havia vacina contra a varíola, muito da resistência tinha a ver com as próprias incertezas e inseguranças do processo de vacinação. Você tinha resistência porque se tirava material originário de vacas doentes para inocular em pessoas. Depois, houve problemas como não se saber que era necessário revacinar após um tempo. Mas, comparando a mortalidade que a varíola causava antes da vacinação e depois, os governos se convenceram de que a vacinação salva vidas, por isso criaram-se leis de obrigatoriedade de vacinação para crianças. Nas últimas décadas do século 19, essa obrigatoriedade é que deu origem aos movimentos de resistência à vacinação. Aí já era o respeito aos direitos individuais que levantava a resistência. E é um período de avanço da microbiologia. No Rio de Janeiro, no início do século 20, quando ocorre a Revolta da Vacina, Oswaldo Cruz estava diante de uma campanha para extinguir três epidemias ao mesmo tempo: a febre amarela, a peste bubônica e a varíola. Por que ele podia fazer isso? Porque, quando a microbiologia incrustou essa ideia de que as doenças epidêmicas são causadas por elementos específicos – seja uma bactéria, um vírus, um protozoário –, os cientistas começaram a procurar os micróbios nos laboratórios, e não nas ruas. Descobriram também que em muitas doenças há um vetor de transmissão: é o mosquito no caso da febre amarela, são os ratos no caso da peste bubônica. Oswaldo Cruz sabe tecnicamente exatamente o que tem de fazer para controlar essas doenças. E controla. No caso da febre amarela, você tem um verão com quase mil mortos, e, no seguinte, 30 ou 40 mortos. No caso da varíola, a vacina se aperfeiçoou. Então, você tem uma vacina mais confiável. Mas é o que se chamava, na época, de despotismo sanitário. Quando havia um caso de febre amarela em uma vizinhança, entravam na casa, lacravam a residência, fumegavam tudo, tiravam todo mundo, isolavam. E as pessoas iam sendo expulsas de casa. Ao mesmo tempo, uma reforma urbana estava acontecendo. A Revolta da Vacina tem evidentemente a varíola como seu principal impulsionador, o regulamento de obrigatoriedade da vacina. Mas é um fenômeno muito complexo, inclusive com uma tentativa de golpe militar. É o período em que os militares se arvoram o direito de tutelar a política. Então, 1904 é diferente do que era no século 19 e também do que é hoje. Na Áustria, hoje, pouco mais de 60% da população está vacinada. Você tem 40% que se recusa a vacinar e que coloca todo mundo em perigo, inclusive a nós, porque eles viram viveiros de variantes. EUA, Áustria e outros países vão virar viveiros de variantes que ameaçam o mundo. Aviões que chegam desses lugares nos quais há 40% de não vacinados podem colocar em risco uma população com mais de 90% de vacinados. Sabe qual a diferença de 2021 para 1904? É que você tem mais de cem anos de história muito bem sucedida com imunizações. Qualquer pessoa que esteja acima de um nível mínimo de boa vontade – não estou nem dizendo de inteligência – olha as estatísticas de mortalidade infantil por varíola, difteria, tétano, poliomielite até as primeiras décadas do século 20 se dá conta. Então, a gente corre risco hoje, sim, claro. Mas temos uma experiência de um século de imunizações. Em 2021, você ir à rua em nome dos seus interesses individuais contra um procedimento de saúde coletiva cuja eficácia há razões abundantes para acreditar sugere que o problema está em outro lugar, não na defesa da liberdade. Os movimentos antivacina chamam atenção e são massivos nos lugares nos quais existe um movimento de extrema-direita ideológico. É assim na Áustria, na França, na Alemanha, nos EUA e também no Brasil.
A extrema-direita está presente onde há movimento contra a vacina. Isso não é isolado. É também essa extrema-direita que agita contra a ciência no caso das mudanças climáticas.
Os movimentos antivacina estão conectados com o chamado antiglobalismo?
É uma coisa horizontal. A extrema-direita está presente onde há movimento contra a vacina. Isso não é isolado. É também essa extrema-direita que agita contra a ciência no caso das mudanças climáticas. Nos EUA, desde os anos 1980, no governo Ronald Reagan, os republicanos trabalham com uma agenda antiproteção ambiental. Isso foi se radicalizando até chegar a Trump, que “passou a boiada”, como se diria em português. Ele quis destruir todo tipo de regulamentação ambiental. Para motivar isso, no aspecto científico, a tática é criar ceticismo quanto a mudanças climáticas. Dizer: “Isso é invenção”. É importante saber que existem hoje em dia estudos sólidos que mostram que o mesmo procedimento atualmente adotado em relação às mudanças climáticas foi, antes, usado em relação ao tabagismo. Nos anos 1950, em filmes de Hollywood, 11 entre cada 10 atores fumavam. Era aquele glamour em torno do tabaco. Aí começou a haver pesquisas relacionando tabagismo a certos tipos de câncer. O que ocorreu nas décadas seguintes: as indústrias do cigarro financiaram pesquisas para lançar dúvidas sobre os estudos que estavam sendo feitos mostrando a relação entre tabaco e câncer. Essa crítica acho que os jornalistas já fizeram, mas às vezes ainda vejo escorregões da imprensa: se há 99 pesquisas científicas dizendo que tabaco dá câncer, não é uma outra pesquisa de um cientista qualquer que a indústria do tabaco conseguiu comprar que vai negar isso; a imprensa não pode “dar espaço aos dois lados” nesse tipo de caso. Não existe controvérsia científica sobre as mudanças climáticas causadas pela humanidade, não adianta procurar, isso já foi superado. O antropoceno é uma realidade, o nível de intervenção no planeta chegou a tal ponto nos últimos séculos que não há possibilidade de negá-la. A dúvida só existe como propaganda ideológica de extrema-direita. A resistência contra a vacina não se explica pela própria vacina, mas, isso sim, por um contexto maior no qual o ativismo anticiência está inserido.
Em que medida a postura do líder da nação, do presidente da república, influencia a tomada de decisão da população? Nos EUA, por exemplo, mudou o presidente, mudou o esforço de vacinação.
Mudou na ótica de governo o esforço de vacinação, mas a resistência continua. Tanto que Joe Biden tem inclusive adotado medidas mais firmes por meio da obrigatoriedade de que funcionários públicos se vacinem. As grandes empresas estão sendo pressionadas a exigir a vacinação dos trabalhadores.
No caso brasileiro, a inação de Bolsonaro influenciou parte da população no combate à covid-19?
É claro que sim. Um estudo da USP já havia provado algo que a CPI da Covid confirmou: no Brasil, nos primeiros meses, se apostou na ideia de imunidade de rebanho. Houve uma aposta no vírus. Queria-se espalhar o vírus. Era o presidente dizendo: “Vai para a rua! Se fechar, vai acabar com a economia! Não toma cuidado!”. E o Ministério da Saúde indo na direção oposta – não à toa dois ministros caíram naqueles primeiros meses. É o tal do gabinete paralelo apontado pela CPI. Essa atuação de Bolsonaro no Brasil e de Trump nos EUA ajuda a entender o número de mortes nos dois países ser tão desproporcional na comparação com países de dimensões semelhantes ao redor do mundo. Trump e Bolsonaro têm uma responsabilidade enorme com o que aconteceu em termos de perdas de vida. Nos EUA, a gente viu que, mesmo a disponibilidade de vacina não necessariamente resolveu o problema: continua o desafio de vacinar um número suficiente de pessoas. No Brasil, até agora esse problema não se configurou. O que dá dó é imaginar que, se tivéssemos tido um governo pautado pela ciência e que tivesse apostado na vacina desde que ela se tornou disponível, desde o início, não teriam morrido tantas pessoas. Se tivesse agido de maneira decisiva, como tenho certeza de que todos os governos da Nova República teriam feito – os do PSDB e do PT, pelo menos –, teria mergulhado na questão da vacina. De 2016 para cá é que se perdeu o país em termos de racionalidade administrativa, econômica, política. Há uma crise geral, e a vacina entrou no roldão dessa crise. Só quando a coisa se tornou inevitável, quando até os EUA mudaram de rumo, é que o Brasil começou a correr atrás de vacina. O que se está vendo é que há uma esperança. Só que esse vírus é muito traiçoeiro. Havendo negacionistas, há viveiros de variantes – que podem nos atingir a qualquer momento. A situação que temos agora no país é de uma vacinação que continua avançando muito rapidamente e que pode ajudar a manter as coisas sob controle, mas o imprevisto é sempre possível. O vírus está circulando mundialmente e existe aí um estoque enorme de céticos que podem pôr tudo a perder, infelizmente.